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A normalização do biscate

Trata-se de uma patranha que acarreta graves consequências sociais. O mandado «se não ganhas o suficiente no teu emprego, arranja mais um biscate» assenta na desumanidade toldada pelo lucro que guia o liberalismo. 

CréditosMário Cruz / Agência Lusa

O capitalismo, principalmente na sua versão neoliberal, fez um eficiente trabalho de prestidigitação conceptual. A estratégia de virar o bico ao prego tem tido um sucesso devastador no que à teoria diz respeito, e catastrófico no que à vida das pessoas concerne. O liberalismo é gritado a plenos pulmões, com assertividade de fazer latejar as veias da testa, como significado de liberdade; quando, na prática, empiricamente comprovado e sublinhado de estômago vazio, é mais uma expressão (neo)modernaça de opressão, que não traz nada de novo. Todos conhecemos bem a anedota do trabalhador promovido a colaborador, da qual rimos com o mesmo nos bolsos, para não chorarmos com o pouco que temos na carteira. O desemprego, por sua vez, após operação cosmética, publicita-se como oportunidade. Nesta senda, com a destreza necessária à acrobacia, a precariedade rodopia e finaliza em flexibilidade – a cambalhota dá-se com rigidez, que deixa mossa no corpo cansado. Há até algumas vozes de «respeito», embora não se dêem a ele, que afirmam que a precariedade é essencial ao funcionamento de determinados sectores (flexíveis) – é o que acontece quando se olha para a vida dos comuns lá do alto do palácio.

Ora, vivemos num mundo em que um reformado de setenta anos, depois de quarenta anos de trabalho e de descontos, ao se aperceber que a reforma não chega ao fim do mês, porque mais de metade vai para medicamentos, ainda pode voltar ao activo. Inscreve-se numa plataforma de entregas ao domicílio e trabalha uma boa quantidade de horas por dia para ganhar mais uns trocos para o ajudar a pagar a renda, e, quiçá, oferecer uma boneca à neta no Natal, para compensar o tempo que não passou com ela. A vida é para ser vivida, não é, minha gente? As netas às vezes até são mimadas e só fazem barulho, mais vale estar ocupado a trabalhar. Mas as «oportunidades» não terminam aí, consoante a cor que prefere, entre as disponíveis no mercado, pode escolher «colaborar» com a App que mais lhe agradar esteticamente, já que paga o material. Há verde, amarelo, laranja... Melhor do que isso, se já estiver velho demais para acartar mercadorias escada acima, pode optar por um serviço de transporte de passageiros (TVDE), que fica sentadinho o dia todo. Afinal, ia ficar sentado na mesma, só que à frente da televisão. Assim, sempre faz alguma coisa útil em prol de quem tem de andar aí de um lado para o outro, e não tem transportes públicos de jeito – devido ao desinvestimento que os sucessivos governos têm perpetuado. 

«Vivemos num mundo em que um reformado de setenta anos, depois de quarenta anos de trabalho e de descontos, ao se aperceber que a reforma não chega ao fim do mês, porque mais de metade vai para medicamentos, ainda pode voltar ao activo.»

Estou a caricaturar, mas o problema é bastante sério, com tendência a agravar-se muito mais profundamente. Esta ilustração do pensionista precário não representa a maioria dos trabalhadores desses serviços, mas coincide com o cenário generalizado em que o liberalismo nos quer meter – o economista Jan Eeckhout, no seu The Profit Paradox, descreve estas «oportunidades» da gig economy nos EUA. As condições de vida e de trabalho cada vez mais precárias, por muito que sejam flexivelmente publicitadas, levam a uma maior procura de trabalhos complementares ou à reunião no mesmo indivíduo de «empregos flexíveis». Esses trabalhos precários de fachada flexível não reúnem as condições mínimas para assegurar uma sobrevivência digna. Os trabalhadores destes serviços não têm contratos que os assegurem na doença, por exemplo. Não trabalham, não comem. A perspectiva de carreira é nula. Hão-de dizer os liberais que é bom para os jovens arrancarem com a sua vida. A verdade é que a falta de condições de trabalho oferecidas pelas empresas e outros empregadores, sob a égide de governos movidos pelo capital, levam a que o arranque dos jovens dure uma vida. Uma vida penhorada pela subjugação do poder político ao poder económico.

Esta normalização do biscate, pintada como «flexibilidade» e «liberdade», é uma patranha que acarreta graves consequências sociais. O mandado «se não ganhas o suficiente no teu emprego, arranja mais um biscate» está assente na desumanidade toldada pelo lucro que guia o liberalismo. O trabalhador deixa de ter vida para estar com a família, para conviver com os amigos, para ver um filme ou ir a uma exposição, e vê a sua saúde posta em causa pelo esforço excessivo. Vive para o trabalho, para regozijo de patrões e accionistas. Para os senhores do dinheiro está tudo bem, até afirmam com toda a leveza que, a vida é mesmo assim, isto é o desenvolvimento económico e quem pensa o contrário acredita em utopias. 

«Esta normalização do biscate, pintada como «flexibilidade» e «liberdade», é uma patranha que acarreta graves consequências sociais. »

Esta grave crise social do «biscate», que está em desenvolvimento, vai também para além desses serviços. Os direitos e seguranças, que os trabalhadores poderiam ter, são substituídos pelas «oportunidades» de trabalhar até morrer. Ao invés de perspectivas de carreira, dá-se «flexibilidades» para trabalharem noutro lado: o médico do SNS pode sempre ir fazer um biscate ao privado para aconchegar o pé-de-meia. A propina não é antidemocrática e uma barreira ao acesso ao Ensino Superior, porque o estudante pode arranjar um biscate para a pagar. O artista não tem de viver da sua arte, porque pode ter um biscate e pintar nas horas vagas. O professor não tem de viver apenas de leccionar, pode muito bem conduzir um TVDE – e até dormir dentro dele para não pagar renda. E já que de rendas falamos, porque é que havemos de nos queixar, se podemos arranjar cinco biscates para pagar os aumentos? A matriz de pensamento neoliberal cose-se com estas linhas, desprezando os esforços dos trabalhadores, culpabilizando-os pelas desgraças das suas vidas, ridicularizando a vontade de terem tempo livre para viverem com as suas famílias e amigos. A própria substituição dos humanos pelas máquinas é usada como validação do desemprego, e, como por milagre oportuno, aparecem essas tais «flexibilidades» como salvação. Num mundo que funciona 24 horas por dia, 7 dias por semana, 12 meses por ano, os empregadores não têm qualquer pudor em exigir aos trabalhadores que trabalhem de noite como se de dia se tratasse. Alguns biscates até já vêm ter às nossas casas, tal é a modernidade.

As relações laborais podem-se ter transformado, podem ter ganhado mais intermediários, novos dispositivos, porém, há algo que nunca mudou: são os trabalhadores que criam a riqueza. Resta lutar por assegurar os direitos dos trabalhadores, o que significa encurtar a margem de manobras opressivas que os patrões possam praticar. Se a flexibilidade da exploração é a precariedade do explorado, que a rigidez da luta seja a garantia duma vida melhor. 

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