|militarização da Europa

Europa abre-se à livre circulação da máquina de guerra

Paira uma ameaça real sobre a Europa, a da militarização da vida no espaço da União Europeia e da NATO, ainda por cima a custo das futuras vítimas de uma aventura militarista: os povos europeus.

Comboio militar da NATO circulando em estradas polacas.
CréditosFonte: US Naval Institut

Talvez porque seja de uma gravidade ultrajante para os cidadãos nestes tempos de austeridade persistente e degradação galopante dos direitos cívicos e sociais de cada um, o escabroso assunto anda como que envergonhado, meio-escondido, ausente mesmo de telejornais e observadores de referência. Isso não invalida a sua existência e a danosa ameaça que traz nas linhas e entrelinhas, apenas denuncia a má consciência de quem finge que nada se passa. E o que se passa é que vamos ser obrigados a cumprir, custe o que custar, as ordens dadas pelo Pentágono, lá longe, em Washington, para financiar as obras públicas que permitam aos exércitos da NATO circularem livremente, sem quaisquer estorvos, através do continente europeu.

Chamam-lhe já várias coisas, tais como «Schengen militar», «eficácia defensiva», «simplificação de formalidades» e outros soundbites a usar como pílulas para mitigar os inevitáveis sintomas de desconforto que se manifestarão quando a manobra em curso de militarização da vida no espaço da União Europeia e da NATO ficar irremediavelmente escancarada.

A necessária logística da guerra

Para começo de exposição, antes de entrarmos no alinhamento da cadeia de decisões que dá forma a esta aberração em fase de acabamento, é essencial saber que os governos da União Europeia membros da NATO têm em seu poder um «Plano de Acção para a Mobilidade Militar», apresentado em 28 de Março pela Comissão Europeia. No âmbito estritamente executivo, sem reflectir, para já, sobre as implicações cívicas, sociais, políticas e económicas das medidas nele contidas, o seu objectivo é «suprimir as actuais barreiras à mobilidade militar» no espaço europeu sob domínio da NATO, «modificando as estruturas não adaptadas aos pesos e dimensões das máquinas militares, nomeadamente em pontes e vias férreas que apresentem uma capacidade de carga insuficiente».

«apesar de ser definida em função da «ameaça russa», a estratégia de livre circulação militar pode também ser útil em situações de levantamentos populares nos Estados membros e outros «distúrbios» de índole social»

Trocando por miúdos, a Comissão Europeia solicita aos governos nacionais que «identifiquem os sectores da rede transeuropeia de transportes a adaptar ao transporte militar, estabelecendo as alterações necessárias». A «reparação» desses sectores, de modo a que se consume a livre circulação de exércitos multinacionais através de cada nação europeia, com uma extensão avaliada em dezenas de milhares de quilómetros, ficará a cargo dos Estados membros, «com uma possível contribuição financeira da União Europeia».

Não existe qualquer dificuldade em prever onde tudo isto irá desembocar. Depois da PESCO, isto é, a «Cooperação Estruturada Permanente», e da insistência na obrigação de cada Estado da NATO em contribuir com dois por cento do PIB para a «defesa», surge o «Schengen militar»1. E de Bruxelas – onde a NATO e a UE se fundem operacionalmente – continuam a chegar os recitativos do mantra do défice com que se esgotam sucessivos episódios da guerra política interna de alecrim e manjerona, e que são suficientes para fundir os neurónios da comunidade comunicacional.

Estando as coisas neste pé pode ficar-se com a sensação de que a iniciativa de mais um atentado contra a sociedade civil e a qualidade de vida dos cidadãos partiu da Comissão Europeia e terá resultado de uma inspiração recente, ditada por acontecimentos de fresca data.

Sabemos, por experiência própria, que a Comissão Europeia é capaz disso e muito mais.

Prepara-se o rolo compressor

Porém, não é este o caso. Como acontece frequentemente, e tem a ver com a essência da Comissão e da própria União Europeia, Juncker e companhia são apenas os intermediários de uma agressão programada a nível bastante mais elevado e poderoso.

Corria o ano de 2015, bem longe ainda das rábulas do affaire Skripal, quando o general Ben Hodges, comandante das forças terrestres norte-americanas na Europa, proclamou a necessidade de criar um «espaço Schengen militar» no continente europeu, de modo a que os Estados Unidos possam fazer frente à «ameaça russa». Através do general Hodges, de Washington o Pentágono recomendava assim à Europa para se adaptar à necessidade de as tropas da NATO se moverem de país em país, com a maior rapidez possível e sem serem estorvadas pelas leis nacionais e procedimentos alfandegários.

«enquanto se edificam muros, cercas e valas para impedir [a circulação dos cidadãos], passam a mover-se, sem constrangimentos, os tanques, carros de assalto e plataformas de mísseis. [Existe] a possibilidade de as bombas nucleares passarem a circular entre nós como qualquer camião de legumes ou pronto-a-vestir.»

Menos de um ano depois, em 2016, foi identificada pelo menos uma publicação da NATO confirmando que as recomendações de Washington tinham entrado na engrenagem da aliança.

Documentos internos relacionados com um relatório da organização divulgado em Outubro desse ano dão conta de que, apesar de ser definida em função da «ameaça russa», a estratégia de livre circulação militar pode também ser útil em situações de levantamentos populares nos Estados membros e outros «distúrbios» de índole social. Um objectivo que a alta comissária para os assuntos externos da União Europeia, a italiana Federica Mogherini, sintetizou destacando a capacidade de «reagir mais eficazmente quando surgem os desafios». Como o da independência da Catalunha, por exemplo; ou protestos em massa contra a guerra e as agressões sociais praticadas por governos ou pela União Europeia.

Em 8 de Novembro de 2017, o Conselho do Atlântico Norte ao nível dos ministros da Defesa – o que pressupõe a presença do Dr. Azeredo Lopes – dedicou-se a debater a maneira de «aplicar as legislações nacionais que facilitem a passagem das forças militares pelas fronteiras» e de «melhorar as infraestruturas civis para adaptá-las às exigências militares».

O rolo compressor começara a mover-se.

Um patamar superior na preparação de uma guerra de enorme amplitude

Apenas três meses depois, em 15 de Fevereiro de 2018, os ministros da Defesa voltaram a encontrar-se em sessão do Conselho do Atlântico; criaram então um Comando Logístico, no âmbito da NATO, «para melhorar a movimentação, na Europa, de tropas e equipamentos essenciais para a defesa». Como se sabe, a NATO jamais agride, apenas se defende.

Só depois de todas estas acções aparece em cena a Comissão Europeia, em fins do passado mês de Março, apresentando conjuntamente ao Parlamento Europeu e ao Conselho o «Plano de Acção sobre Mobilidade Militar» – confirmando assim que ela própria não passa de um eixo de transmissão e imposição de estratégias idealizadas pelo Pentágono e a NATO.

Este plano, depositado entretanto nas mãos dos governos dos Estados membros, tem a vantagem de expor muito claramente as medidas a tomar, não deixando assim dúvidas de que estamos perante uma operação de militarização da sociedade que pode encarar-se como um patamar superior na preparação de uma guerra de enorme amplitude.

As recomendações veiculadas através da Comissão Europeia determinam a «simplificação das formalidades alfandegárias para as operações militares e o transporte de mercadorias perigosas de tipo militar» – o que implica a possibilidade de as bombas nucleares passarem a circular entre nós como qualquer camião de legumes ou pronto-a-vestir. E onde até agora se proclamou a liberdade de circulação dos cidadãos, enquanto se edificam muros, cercas e valas para a impedir, passam a mover-se, sem constrangimentos, os tanques, carros de assalto e plataformas de mísseis.

Para que isso seja possível, especifica o plano apresentado via Comissão Europeia, devem «suprimir-se» as «actuais barreiras à mobilidade militar», modificando «as estruturas não adaptadas aos pesos e dimensões das máquinas militares, nomeadamente em pontes e vias férreas que apresentem uma capacidade de carga insuficiente». Isto é, e apenas como exemplo, se uma ponte não suportar uma coluna de blindados deve ser reconstruída, ou mesmo substituída.

Trata-se, diz a Comissão, «de normalizar as obras de arte da União Europeia à medida das necessidades operacionais da NATO». Para isso, os Estados membros são convidados a fornecer mapas pormenorizados das suas vias de comunicação e listas minuciosas das necessidades de adaptação de estradas, caminhos-de-ferro, túneis, pontes, portos e aeroportos aos padrões de mobilidade rápida e eficácia dos exércitos da NATO, com todos os equipamentos que os acompanham.

Além disso, deverão os governos agilizar os processos de adaptação ou supressão de leis e regulamentos susceptíveis de condicionar ou estorvar a livre circulação de todo o tipo de armas, veículos, explosivos e munições nos seus territórios.

As despesas ficam a cargo dos cidadãos de cada Estado membro, recorda-se, como se não lhes bastassem a austeridade, os salários congelados, o desemprego, as consequências da obsessão do défice, a precariedade, a anarquia imparável atacando o mercado laboral e outras consequências da moderna vida em paz, liberdade e democracia. Poderão os países, contudo, vir a usufruir de uma eventual «contribuição financeira» da União Europeia. Que além de incerta, pela própria formulação, certamente será canalizada pelas vias opacas por onde costumam sumir-se os subsídios, em direcção às contas on ou offshore dos beneficiários habituais.

Em termos meramente formais, é certo, estas medidas da militarização do nosso quotidiano são ainda projectos em poder dos mecanismos de decisão. Cabe aos cidadãos quebrar as barreiras que vão sendo erguidas para os impedir de conhecer o que se prepara à sua revelia e combater tão monstruosa como desumana engrenagem. Mesmo que seja cada vez mais poderosa esta sensação de inutilidade e vulnerabilidade perante a imensa máquina de guerra em movimento.
 

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