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Génese do «+Liberdade»

As classes dominantes procuram manter o seu poder ideológico e assegurar a legitimidade do sistema capitalista, criando um imaginário em que não existem relações estruturalmente desiguais e conflituosas entre grupos sociais.

Desde a crise financeira de 2008 que o paradigma neoliberal dominante começou a ser alvo de contestação generalizada e descontentamento popular. De lá para cá, de crise em crise, aumenta a convicção de que vivemos num sistema económico e social que só tem para oferecer a degradação das condições de vida da larga maioria que vem produzindo a riqueza social, por contraponto com a acumulação desbragada de uma ínfima minoria abastada. Porém, o certo é que a crise de autoridade do neoliberalismo não tem permitido pôr fim ao ciclo infindável de austeridade, ainda que amplamente visto como ilegítimo e injustificável. 

Um dos motivos que contribuem para o impasse actual (embora por si só insuficiente) cabe à capacidade da classe dominante (definida como proprietária dos meios de produção) de reinvenção e promoção de novas forças políticas, movimentos e canais de comunicação, em resposta à crescente desconfiança sobre os «media tradicionais» e partidos políticos que seguiram o diktat da Troika (no caso português, PS, PSD e CDS). Tal como se comprova com a emergência de partidos como a Iniciativa Liberal e o Chega, e jornais como o Observador ou institutos como o «Instituto +Liberdade».

«Desde a crise financeira de 2008 [...], de crise em crise, aumenta a convicção de que vivemos num sistema económico e social que só tem para oferecer a degradação das condições de vida da larga maioria que vem produzindo a riqueza social, por contraponto com a acumulação desbragada de uma ínfima minoria abastada.»

No presente artigo irei debruçar-me sobre o «Instituto +Liberdade», por constituir a mais recente novidade e ser o exemplo perfeito de que o figurino só muda para revitalizar aquilo que já devia estar caduco. O intitulado «think-tank», embora se afirme como «apartidário», foi lançado publicamente por Carlos Guimarães Pinto (IL) e Adolfo Mesquita Nunes, e conta nos seus órgãos sociais com representatividade transversal da direita: Cecília Meireles e Ana Rita Bessa (CDS-PP), Catarina Maia (IL), Lídia Pereira (PSD) e Fernando Alexandre (antigo secretário de Estado do governo da PAF).

Uma das formas do instituto para captar o interesse dos mais novos surge da divulgação de pequenos vídeos animados – da autoria das organizações Fraser Institute e Foundation for Economic Education –, inspirados em Hayek, Locke, Milton Friedman e Mises. Sob a capa de uma pretensa modernidade, o conteúdo dos vídeos confirma a descrição de Avelãs Nunes a propósito do neoliberalismo, como «o reencontro do capitalismo consigo mesmo, o capitalismo puro e duro do século XVIII (…), convencido de que pode permitir ao capital todas as liberdades, incluindo as que matam as liberdades dos que vivem do rendimento do seu trabalho» 1.

Entre os principais financiadores do Fraser Institute 2, merece destaque a petrolífera norte-americana ExxonMobil, a Aurea Foundation, fundada por Peter Munk, do grupo canadiano Barrick Gold (uma das maiores multinacionais destinadas à extracção de ouro), e a Charles G. Koch Charitable Foundation, fundada pelos irmãos Koch, proprietários do segundo maior grupo económico dos EUA e famosos pelo seu muitas vezes repetido slogan «socialism sucks». Quanto à Foundation for Economic Education 3, além do financiamento imprescindível da Charles G. Koch Charitable Foundation, notabilizam-se as contribuições dos fundos Donors Capital Fund e Donors Trust, cujo histórico de doações, de acordo com o jornal The Guardian, conta com aproximadamente 120 milhões de dólares oferecidos a mais de 100 organizações que negavam o aquecimento global, entre 2002 e 2010, tendo ainda financiado agendas contra sindicatos e escolas públicas 4.

No que concerne ao financiamento do instituto «+Liberdade», retira-se do relatório de gestão e contas de 2021 que parte substancial advém de dois mecenas: Carlos Moreira da Silva (presidente do conselho de curadores) e Luís Amaral. De Carlos Moreira da Silva, sabemos que é apresentado como o 19.º mais rico de Portugal (revista Exame), com uma fortuna avaliada em 430 milhões de euros 5. Em relação a Luís Amaral, presume-se que seja o fundador e accionista maioritário do jornal online Observador, bem como do grupo Eurocash, um dos maiores retalhistas da Polónia. Além dos meios próprios, o instituto ainda conta com a divulgação da sua actividade através do jornal online ECO, cuja estrutura accionista fundadora é composta, essencialmente, por um grupo de empresários de grandes grupos económicos, entre os quais António Amorim (Grupo Amorim), António Mota (Mota-Engil), Alfredo Casimiro (Groundforce), Mário Ferreira, entre outros.

«o instituto promove a difusão de narrativas que visam a marginalização das alternativas socialistas e comunistas como inerentemente antidemocráticas e autoritárias, pois existe o receio de que, numa conjuntura de crise e ataque às condições de vida da maioria da população, tal esquerda possa reemergir em força. Assim sendo, reproduzem narrativas de revisionismo histórico que proliferam noutros cantos do mundo»

Com a criação e financiamento dessas organizações, as classes dominantes procuram manter o seu poder ideológico e reassegurar a legitimidade do sistema capitalista, arregimentando fortes aliados para criar um imaginário em que não existem relações estruturalmente desiguais e intrinsecamente conflituosas entre grupos sociais, mas apenas indivíduos posicionados como actores do mercado guiados pela concorrência, com os mesmos interesses, os quais devem lutar contra o poder opressivo do Estado.

Como parte inseparável desse imaginário, o instituto promove a difusão de narrativas que visam a marginalização das alternativas socialistas e comunistas como inerentemente antidemocráticas e autoritárias, pois existe o receio de que, numa conjuntura de crise e ataque às condições de vida da maioria da população, tal esquerda possa reemergir em força. Assim sendo, reproduzem narrativas de revisionismo histórico que proliferam noutros cantos do mundo (especialmente, nos EUA e Brasil) – e que mais não são do que perfeitas manifestações de ignorância – equivalendo fascismo e comunismo como duas faces da mesma moeda autoritária e colectivista. Para sustentar tal disparate, recorrem habitualmente a uma resolução infame do Parlamento Europeu que, não por acaso, mereceu a aprovação da esmagadora maioria das forças políticas fascizantes (Reagrupamento Nacional, Liga Norte, Irmãos de Itália, Lei e Justiça, Fidesz, etc.), bem como recorrem ao mito do 25 de Novembro de 1975 como evento decisivo que devolveu «o ideal democrático do 25 de Abril», por oposição às conquistas da Revolução de Abril, que «forçavam a imposição do socialismo, de cima para baixo, e encaminhavam o país para uma ditadura totalitária». Ao retratar o socialismo e comunismo como inerentemente totalitários, qualquer política de esquerda passa a ser construída como uma ameaça para a liberdade e democracia, ridicularizando assim qualquer tentativa de mitigar (muito menos de resolver) as desigualdades actuais. Nesse sentido, quaisquer políticas de redistribuição do rendimento e de investimentos públicos que aproveitem as camadas sociais de rendimentos mais baixos (habitação, creches e escolas de ensino básico, rede pública de lares, serviços públicos de saúde), são sempre encaradas como um atentado contra a liberdade individual (dos capitalistas, pois claro), que inevitavelmente levará ao totalitarismo. Para tal, também investem a sua energia em projectar as crises sistémicas do capitalismo no próprio socialismo.

«Ao retratar o socialismo e comunismo como inerentemente totalitários, qualquer política de esquerda passa a ser construída como uma ameaça para a liberdade e democracia, ridicularizando assim qualquer tentativa de mitigar (muito menos de resolver) as desigualdades actuais.»

Toda e qualquer falha que resulta do próprio processo de acumulação capitalista, sendo endógena ao seu modo de produção, é redireccionada para as «políticas socialistas», isolando o capitalismo neoliberal da crítica e deslegitimando qualquer tentativa de reforma que não atenda aos princípios do livre mercado. Pelo caminho, criam-se as condições para que o Estado fique amputado da capacidade de prestar tais serviços (inclusive, por via do fim da tributação progressiva), restando como única alternativa a sua contratação ao capital privado, com direito a rendas perpétuas, sem risco (o grande capital às custas do público, e com risco socializado).

Uma segunda estratégia passa por desviar o foco de uma crítica estrutural do capitalismo, canalizando as críticas para o «Estado prestador», «os funcionários públicos», «as clientelas do Estado», «os indigentes», «os reformados»… Procurando obstruir, portanto, a aliança das classes oprimidas e, em última análise, a capacidade de forçar mudanças sociais.

Resta acrescentar que o que torna particularmente inquietante as estratégias acima referidas, delineadas sempre sob o ponto de vista dos interesses do grande capital, é que não se encontram confinadas na direita e extrema-direita, sendo apropriadas por uma parte substancial da social-democracia, que cava a sua própria sepultura.

Daí que seja necessário destapar, vezes sem conta, o que escondem determinados «laboratórios de propaganda» e a quem servem. Ao mesmo tempo terá de se demonstrar que a única saída para este ciclo de austeridade sem fim é a defesa de um projecto político alternativo que não poderá separar-se das lutas dos trabalhadores, no plano sindical e no plano político, nem das conquistas da nossa revolução de orientação socialista.

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