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Escutas revelam Sérgio Moro conduzindo ilegalmente operação contra Lula

Sérgio Moro foi apanhado em escutas que revelam uma conduta proibida pela Constituição e vedada pelo Código de Ética, ferindo os princípios de imparcialidade, independência e equidistância entre defesa e acusação.

Sérgio Moro, já então designado ministro da Justiça, assegurou, durante uma conferência de imprensa, que o presidente do Brasil, Jair Bolsonaro, «não era um candidato da extrema-direita» mas um «homem que tinha ouvido o povo». Madrid, 3 de Dezembro de 2018.
CréditosEPA/Juan Carlos Hidalgo / LUSA

Uma reportagem publicada neste domingo pelo The Intercept Brasil revela que o então juiz federal Sérgio Moro interveio na actividade acusatória contra Lula da Silva, colaborando e por vezes dirigindo a acusação de uma forma «que seria proibida pela Constituição brasileira e vedada pelo Código de Ética da Magistratura, uma vez que feriria os princípios da imparcialidade, independência equidistância entre defesa e acusação».

As mensagens trocadas pelo responsável pelo julgamento em 1ª instância de diversos casos de corrupção pela 13.ª Vara Criminal Federal de Curitiba, dentre eles, o caso do triplex no Guarujá, com o procurador da acusação contra Lula da Silva, Deltan Dallagnol, revelam que «Moro sugeriu ao procurador que trocasse a ordem de fases da Lava Jato, cobrou agilidade em novas operações, deu conselhos estratégicos e pistas informais de investigação, antecipou ao menos uma decisão, criticou e sugeriu recursos ao Ministério Público e deu broncas em Dallagnol como se ele [Sérgio Moro] fosse um superior hierárquico dos procuradores e da Polícia Federal».

Moro e Dallagnol sempre foram acusados de operarem juntos na Lava Jato, mas não havia provas explícitas dessa actuação conjunta – até agora. Nas conversas com o procurador, Moro fala no plural: «Deveriamos rebater oficialmente?», perguntou, sobre a resposta a dar a ataques do PT contra a Lava Jato.

Moro negou em diversas oportunidades que trabalhava em parceria com acusação – tal como negou, ainda em 2017, qualquer outro interesse na vida pública que não o de permanecer como juiz. Hoje é ministro da Justiça do governo Bolsonaro e as actuais fugas de informação revelam, mais uma vez, uma duplicidade inadmissível em cargos públicos.

Para compreender a avassaladora dimensão da colaboração indevida entre juiz e procuradores é preciso ler os documentos propiciados pela reportagem do The Intercept Brasil.

Além desta, outras duas «reportagens explosivas» foram publicadas no The Intercept Brasil por uma equipa de jornalistas de investigação integrada por Betsy Reed, Leandro Demori e Glenn Greenwald – o receptor do prémio Pulitzer que em 2013 pôs a nu, a partir dos ficheiros obtidos por Edward Smowdon, o programa de vigilância electrónica inconstitucional levado a cabo, em conjunto, pelos EUA e pela Grã-Bretanha.

Impedir a vitória de Haddad à custa do silenciamento de Lula

Os arquivos acedidos pelos jornalistas revelam que a apregoada isenção político-partidária dos procuradores da força-tarefa em Curitiba não foi mais do que uma fachada para uma equipa unida em torno de um objectivo político: impedir a «volta do PT» ao poder sem olhar a meios.

Os procuradores liderados por Deltan Dallagnol discutiram formas de inviabilizar uma entrevista do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva a duas semanas das eleições presidenciais porque, em suas palavras, aquela poderia «eleger o Haddad».

Em 28 de Setembro de 2018 o ministro [juiz] Ricardo Lewandowski, do Supremo Tribunal Federal (STF), autorizou Lula da Silva a conceder uma entrevista ao jornal Folha de S. Paulo, afirmando, em decisão noticiada pelo Consultor Jurídico, que o Plenário do STF garantia «a plena liberdade de imprensa como categoria jurídica proibitiva de qualquer tipo de censura prévia».

«Podemos estar diante do maior escândalo institucional da História da República. Que se apure toda a verdade»

Fernando Haddad, ao tomar conhecimento dos artigos no Intercept

No próprio dia da decisão os procuradores começaram a debater estratégias para derrubá-la judicialmente ou, caso a entrevista se consumasse, para garantir que a mesma fosse estruturada de forma a reduzir o seu impacto político e eventuais benefícios eleitorais para o candidato do PT. «Acreditando se tratar de uma conversa privada que jamais seria divulgada, eles deixaram explícitas suas motivações políticas», denuncia The Intercept Brasil.

A discussão estendeu-se por várias horas, «mais parecendo uma reunião entre estrategas e operadores anti-PT, motivados por convicções ideológicas», do que uma conversa entre procuradores supostamente imparciais. Um procurador chegou a sugerir «expressamente», segundo a fonte, «que a Polícia Federal (PF) manobrasse para que a entrevista fosse feita depois das eleições, já que não havia indicação explícita da data em que ela deveria ocorrer. Dessa forma, seria possível evitar a entrevista sem descumprir [incumprir]a decisão». Ou seja, que se usasse a PF para fins eleitorais.

Entretanto, outros magistrados e políticos movimentavam-ser para calar a voz incómoda do prisioneiro de Curitiba. Eram 22h49 quando um procurador partilha a notícia do site de direita O Antagonista: «Partido Novo recorre ao STF contra entrevista de Lula». Pouco depois o juiz Luiz Fux atendeu ao pedido do Partido Novo e interditou a entrevista, alegando ser necessária «a relativização excepcional da liberdade de imprensa». Os procuradores exultaram, indiferentes ao facto de um juiz do STF ter poderes para suspender a liberdade de imprensa, ou de um partido que se diz liberal ter entrado com um pedido nesse sentido.

A horas da acusação a Lula, procurador inseguro quanto a provas

Outra das revelações dos arquivos é a apreensão de Deltan Dallagnol, coordenador da força-tarefa de 13 procuradores que há um ano passavam a pente fino a vida de Lula da Silva, sobre a solidez da história que contaria ao juiz Sergio Moro. Dallagnol «estava inseguro justamente sobre o ponto central da acusação que seria assinada por ele e seus colegas: que Lula havia recebido de presente um apartamento triplex na praia do Guarujá após favorecer a empreiteira OAS em contratos com a Petrobras», revela The Intercept Brasil.


Em mensagem enviada a 9 de Setembro a um grupo baptizado de Incendiários ROJ, formado pelos procuradores que trabalhavam no caso, o coordenador admitia que «falarão que estamos acusando com base em notícia de jornal e indícios frágeis» e que «até agora tenho receio da ligação entre petrobras e o enriquecimento». A dúvida era precisamente se «o apartamento triplex poderia ser apontado como propina para Lula nos casos de corrupção na Petrobras», como viria a ser anunciado ao público dias depois.

Ora «sem essa ligação», como nota The Intercept Brasil, o caso não poderia ser julgado em Curitiba, onde apenas acções relacionadas com a empresa eram objecto de investigação, mas em São Paulo. O MP de São Paulo já investigava o caso Bancoop muito antes de Curitiba. Em uma disputa que envolveu até mesmo o STF, a Lava Jato tentava tirar o caso das mãos dos paulistas mas, para isso, o imóvel de Lula precisava de ser relacionado com a corrupção na Petrobras, para que o caso fosse parar às mãos de Sérgio Moro, juiz em Curitiba.

«Vamos colocar uma coisa muito clara, que se ouve muito por aí que a estratégia de investigação do juiz Moro. […] Eu não tenho estratégia de investigação nenhuma. Quem investiga ou quem decide o que vai fazer e tal é o Ministério Público e a Polícia [Federal]»

Sérgio Moro, Março de 2016 

Apesar da oposição do MP de São Paulo, que julgava impossível estabelecer uma correlação directa entre ambos os casos, a Lava Jato convenceu o STF de que teria estabelecido um vínculo entre o «caso do triplex» e a Petrobras. As conversas secretas do grupo de procuradores revelam que «não tinham certeza dessa relação nem mesmo poucas horas antes de apresentarem a denúncia».

O The Intercept Brasil nota ainda inconsistências graves em uma reportagem da Globo (apoiante de Bolsonaro) sobre o «caso do triplex», amplamente utilizada pela acusação como indício contra Lula da Silva e justificativo para a assunção do processo a Curitiba, quando acusação e reportagem se referem a edifícios diferentes. Uma evidência de que a investigação foi imprecisa num dos pontos mais cruciais da acusação – na definição do imóvel que materializaria a propina que Lula teria recebido da empreiteira – e que se baseou em conjecturas ideológica e processualmente convenientes mas não corroboradas por factos.

The Intercept promete mais

Glenn Greenwald e o The Intercept Brasil não vão ficar por aqui: «esse é apenas o começo do que pretendemos tornar uma investigação jornalística contínua das acções de Moro, do procurador Deltan Dallagnol e da força-tarefa da Lava Jato», expondo «comportamentos anti-éticos e transgressões que o Brasil e o mundo têm o direito de conhecer».

A documentação anonimamente recebida pelo The Intercept Brasil compõe-se de «arquivos enormes e inéditos – incluindo mensagens privadas, gravações em áudio, vídeos, fotos, documentos judiciais e outros itens» e poderá atingir «indivíduos que ainda detêm um enorme poder político e económico dentro e fora do Brasil».

Os jornalistas explicam a importância das revelações «pelas consequências incomparáveis das acções da Lava Jato em todos esses anos de investigação», envolvendo «diversos oligarcas, lideranças políticas, os últimos presidentes e até mesmo líderes internacionais acusados de corrupção».

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