|Defesa Nacional

Soberania e componente Militar de Defesa (III)

As propostas de atualização da Lei de Programação Militar (LPM) deveriam respeitar a Constituição. Os documentos que enquadram o processo de revisão da LPM permitem concluir que tal não acontecerá.

Caças F-16 MLU da Força Aérea Portuguesa constituem a espinha dorsal da aviação de caça portuguesa, com 31 aeronaves.
CréditosFonte: Portugal Defense News and Global

O plano de investimento na capacidade Militar da Defesa que a Lei de Programação Militar (LPM) consubstancia é a 4.ª derivada da Constituição da Republica Portuguesa (CRP), pelo que o seu conteúdo tem que respeitar os comandos constitucionais e, por isso, deveria, em prioridade, dar resposta às necessidades das Forças Armadas (FA) para o exercício da Soberania sobre o território nacional. As alterações tecnológicas deveriam ser cuidadosamente incorporadas para melhor potenciar a nossa capacidade militar sendo imprescindível uma Condição Militar atualizada e respeitada.

As propostas de atualização da LPM deveriam orientar-se pelo respeito do teor da nossa Constituição, atenderem ao País que somos, ao que se tem passado nos últimos anos e aos ensinamentos que daí se recolhem, e à salvaguarda do nosso futuro como Nação Soberana. O que prevalece, justificado pela propaganda belicista, é o incremento do esforço de investimento a reboque dos ditames e interesses da NATO e da UE.

1. O processo de identificação das capacidades a adquirir para que as FA possam cumprir as missões que lhe estão atribuídas exige que se identifiquem no País áreas de vulnerabilidade e risco e como eliminar ou reduzir tais vulnerabilidades e mitigar esses riscos. Torna-se inevitável perspetivar o esforço de realização dessas capacidades identificando o que deve merecer primeira prioridade de realização, ou seja respondendo à pergunta que instrumentos de ação critica, porque prioritários, para o exercício da Soberania?

É à satisfação de tais capacidades criticas que, no mínimo e em prioridade, a Lei de Programação Militar (LPM) deverá dar resposta.

2. Para materializar uma capacidade é preciso dar resposta a um complexo agregado de necessidades. Aqui se incluem as necessidades de: pessoal; meios materiais; infra estruturas especificas de apoio e operação; treino (para formadores, operadores e combatentes, técnicos de manutenção e de administração da logística); logística que assegure a sua sustentação, teste, avaliação e certificação, tudo ponderado no horizonte do ciclo de vida dos equipamentos necessários à materialização da capacidade, sendo que, esse ciclo de vida se inicia com a decisão de proceder à sua aquisição e termina quando a capacidade é considerada desnecessária.

3. Todas as necessidades devem ser identificadas aquando do início do programa de aquisição/levantamento de cada capacidade. Trata-se de elaborar um plano que, por ser plano, incorporará os necessários mecanismos de análise de risco, controlo de execução e atualização, independentemente de estar ou não vertido em formato de Lei.

4. A Lei de Programação Militar (LPM) inventaria os programas de aquisição de bens e serviços que concorrerão para capacitar as FA no cumprimento de determinadas missões. Esta Lei é a quarta derivada da Constituição da República (CRP) de onde deriva o Conceito Estratégico de Defesa Nacional (CEDN) de que já foram publicadas três versões (entre 1985 e 2013).

Do CEDN deriva a definição do Conceito Estratégico Militar (CEM) documento classificado por isso não suscetível de apreciação pública.

O CEM determina as grandes linhas conceptuais de funcionamento e atuação das FA, as orientações gerais para a sua preparação, emprego e sustentação, estabelece as suas missões (MIFA) e define o sistema de forças e dispositivo.

Das MIFA deriva a identificação do que é necessário para cumprir as missões aí definidas. Atento o que possuem e é utilizável no cumprimento da missão as FA especificam o que tem de ser adquirido.

No encadeamento definido chegamos à LPM cuja execução concorre para a materialização das capacidades das FA. As capacidades ficarão disponíveis para utilização após o treino inicial e verificação/certificação das qualificações aplicáveis.


5. Como os recursos são sempre limitados, o ambiente externo é de previsão incerta e a situação existente está em rápida mudança, é inevitável estabelecer prioridades a montante e entre as diferentes necessidades identificadas na LPM. O estabelecimento dessas prioridades deve decorrer da avaliação dos domínios em que nos encontremos vulneráveis, do grau de risco que o País corre se alguém tiver a intenção e capacidade de explorar tais vulnerabilidades para nos agredir ou se opor aos nossos propósitos e, se isso acontecer, os danos em que poderemos incorrer. Pode acontecer que insuficiências de financiamento aconselhem que se materialize uma capacidade menos dispendiosa do que outra de prioridade mais elevada mas para a qual o financiamento se veio a revelar insuficiente.

6. A leitura do CEDN confronta-nos com um documento demasiado abrangente e que não define metas nem quantifica objetivos. A mesma afirmação se aplicará ao CEM.

Pode compreender-se que o CEDN e o CEM sejam de conteúdo abrangente, sem objetivos intermédios e sem prazos de realização explicitados. Uma formulação ampla está mais consentânea com a imprevisibilidade e velocidade com que nos dias de hoje se assiste à alteração da situação internacional e da tecnologia e na ausência de objetivos e prazos poder-se-á dizer que foram cumpridos mas ter-se-á que conceder que há falta de rigor.

7. A tecnologia dos nossos dias está a evidenciar profundas alterações na condução da guerra e na organização das FA que melhor potencia os resultados (i.e. comandos conjuntos). O emprego das forças tem de ser pensado e comandado de forma integrada. As componentes (terrestre, aérea e marítima) serão empenhadas de acordo com o ambiente (terra, mar e ar) em que as ações militares irão decorrer atentas as operações a executar.

Se as alterações na condução da guerra se revelam inevitáveis e são de encarar pelo potencial de «benefício»1 que podem aportar ao País é contudo imprescindível saber previamente o que se quer e para onde se vai e que as alterações «sirvam para reforçar a Instituição e a sua eficiência...e não para a debilitar ou descaracterizar»2.

8. Por outro lado, as alterações nas FA (Condição Militar, organização e reequipamento) têm de ser encaradas com muita precaução. Essas alterações são hoje sentidas com mais intensidade em consequência da «sofisticação tecnológica» que caracteriza os novos equipamentos e cuja entrada ao serviço acarreta:

- Colocação do país utilizador numa situação de grande dependência do país fabricante dos equipamentos/armamento;

- Necessidade de infra estruturas específicas de operação e apoio;

- Alterações na logística existente para assegurar o seu funcionamento e sustentação;

- Alterações nas táticas de combate sua validação e exercitação; - Necessidade de pessoal qualificado e treinado nos novos equipamentos (na sua operação e na sua logística, manutenção incluída).

Concorrentemente, a massificação e internacionalização da produção de componentes tecnológicos sofisticados ditou a acessibilidade, em larga escala e a custo baixo, à concepção e fabrico de engenhos possuidores de elevada capacidade de destruição e a novos patamares de assimetria entre contentores e agressores potenciais. Esta realidade coloca necessidades acrescidas ao sistema de informações que suporta a identificação, caracterização da ameaça e definição das correspondentes contramedidas a adoptar.

9. A motivação dos homens e mulheres que servem as FA e o recrutamento3 para nelas servir são fortemente penalizados pelo atraso Institucional em fazer com que a Condição Militar acompanhe, no seu reconhecimento, as exigências de conhecimento para a definição dos requisitos (especificações técnicas-funcionais e logísticas) a que as capacidades a adquirir devem obedecer e para a formação necessária ao emprego e manutenção de equipamento utilizado pelas FA. Atraso que vê os seus efeitos negativos ampliados por uma recorrente atuação de desrespeito da Condição Militar (i.e. assistência na saúde, remunerações e ação social complementar) nos termos em que a mesma se encontra vertida na legislação em vigor.

10. Se o respeito pela Condição Militar constitui elemento fundamental para o cumprimento da missão das FA, os meios que a Nação lhe confia não são de somenos importância. Os programas de aquisição de novos meios estendem-se em regra por vários anos. Na Lei atual a vigência de 12 anos está acompanhada da salvaguarda que permite prazos mais longos para a calendarização dos encargos. Em sucessivas versões da LPM (a primeira data de 1985) observa-se o prolongamento do calendário de vigência da Lei para acomodar os prazos de execução dos programas. Desde 1985 que se acentuou o prolongamento no tempo dos programas de reequipamento atingindo-se as durações mais extensas (para os requisitos inicialmente definidos) com os programas que recorreram a empréstimos bancários (i.e. «leasing», helicópteros EH 101 e aeronaves C-295) e que acarretaram pesadíssimos encargos financeiros evitáveis se outra tivesse sido a opção para o seu financiamento. Com as soluções de "leasing" adotadas canalizaram-se para a banca milhares de € que ficaram a faltar noutras áreas.

11. A aproximação inicial de uma LPM orientada para aquisição de equipamento evoluiu a reboque da NATO para uma LPM concebida para a aquisição de capacidades. A programação do investimento por capacidades incrementa o grau de «nebulosidade» na publicitação do material a adquirir uma vez que, por regra, exige a aquisição de um agregado de equipamentos o que obriga a estender o investimento por mais anos. Alargar prazos incrementa incerteza sobre a adequação dos equipamentos a adquirir (seja por alterações na ameaça seja por aceleração do obsoletismo tecnológico) e imprevisibilidade na concretização dos financiamentos. Para acomodar a imprevisibilidade e incerteza referidas a Lei é revista e atualizada. A atualização da presente Lei deverá ocorrer «no ano de 2018, produzindo os seus efeitos a partir de 2019».

12. As propostas de atualização da LPM deveriam orientar-se pelo respeito do teor da nossa Constituição, atenderem ao País que somos, à salvaguarda do futuro como Nação Soberana e ao que se tem passado nos últimos anos e ensinamentos que daí se recolhem. A análise dos documentos publicados e que enquadram o processo de revisão da LPM permite concluir que assim não acontecerá. O que prevalece, justificado pela propaganda belicista, é o incremento do esforço de investimento a reboque dos ditames e interesses da NATO e UE.

13. Nas duas reflexões anteriores abordámos o tema «Soberania e componente Militar de Defesa» na parte que titulamos por «Considerações Estratégicas essenciais» e «Estancar a degradação do Sentimento de Estado-Nação». Na presente reflexão fizemos o enquadramento do processo legislativo conducente à LPM. Encerraremos oportunamente com a defesa de uma politica que pugne por uma capacidade de defesa autónoma.

Nota da redacção

O presente é o terceiro de quatro artigos de Jorge Aires (Engenheiro Electrotécnico e Major-general da Força Aérea, na reforma) dedicados à Soberania e componente Militar de Defesa, que o AbrilAbril tem vindo a publicar quinzenalmente desde 2 de Setembro de 2018.

Podendo e devendo ser considerados autonomamente, acreditamos que a leitura, sequencial ou entrecruzada, do conjunto dos artigos, ajudará à compreensão mais profunda da temática abordada.

Por isso damos ligação para a introdução e para os dois primeiros artigos: «Considerações estratégicas essenciais» e «Estancar a degradação do Sentimento de Estado-Nação».

Repetiremos este processo aquando da publicação do quarto e último artigo da série, «Pugnar por uma capacidade de defesa autónoma».


O autor escreve ao abrigo do Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa de 1990 (AE90)

  • 1. A guerra só acarreta prejuízos, e incalculáveis, pelo que a sua declaração só deve ocorrer em situações limite. A capacidade do País para evitar a guerra anda a par com a sua capacidade dissuasora. Em tese, quanto maior capacidade dissuasora menor é a probabilidade de ser atacado. No contexto desta reflexão o que se pretende assinalar com a referência a «benefícios» é que, respeitada a ética, a evolução tecnológica tem potencial para a redução significativa dos custos inerentes à existência e funcionamento da Instituição Militar.
  • 2. Ver o editorial da revista Nação e Defesa n.º 98 (Verão de 2001). Da politica dos três R – Redimensionar, Reorganizar e Reequipar – os resultados mais evidentes são no Redimensionamento (entenda-se redução de efetivos). Uma área com resultados profundamente negativos é o incumprimento da legislação em vigor que define a Condição Militar. Por estes dias, o exercício da função militar está já profundamente descaracterizado e tal descaracterização sofrerá uma aceleração significativa com a entrada em vigor do novo Regulamento de Avaliação de Mérito (Ver, em AbrilAbril, «Militares criticam novo Regulamento de Avaliação do Mérito».
  • 3. São recorrentes as notícias sobre a incapacidade das FA em recrutar e preencher os quantitativos aprovados. Apesar das dificuldades agravadas para as pretensões de saída há um número crescente de militares (Quadros Permanentes, Voluntários e Contratados) a antecipar a cessação do vínculo apesar de obrigados a pagar ao Estado compensações indemnizatórias de milhares de euros.

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