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|tráfico de pessoas

Tráfico de seres humanos: realidades e silêncios

O tráfico de seres humanos não é aceite de modo livre e consciente, mas foi e é resultado da ausência de uma alternativa real e aceitável para o desenvolvimento de uma vida digna.

Créditos / iStock

Problemas velhos continuam a estigmatizar as mulheres, a inferiorizá-las mesmo quando elas cantam o amor como a mais bela beleza da vida. Seduzidas, iludidas, no fundo para terem uma vida melhor, mas sempre ávidas e inconformadas, exigindo mudanças significativas e convergências que sejam verdadeiras e não nebulosas para as entreter e continuar a subjugar.

O tráfico de seres humanos não é aceite de modo livre e consciente pelos traficados e traficadas, mas sim, foi e é resultado da ausência de outra alternativa real e aceitável para o desenvolvimento de uma vida digna.

O recrutamento das vítimas é uma parte essencial do processo do tráfico de pessoas.

Em geral, esse recrutamento envolve alguma forma de engano. A vítima pode ser recrutada sob falsas promessas de bom trabalho e bom salário. Mas também são comuns, sobretudo tratando-se de mulheres, que as vítimas sejam enganadas a partir da criação de uma relação de falso interesse amoroso por parte do traficante, conhecido por «o encantador de sereias», que, com isso, ganhará a confiança da vítima.

«O tráfico de seres humanos não é aceite de modo livre e consciente pelos traficados e traficadas, mas sim, foi e é resultado da ausência de outra alternativa real e aceitável para o desenvolvimento de uma vida digna»

À medida que a relação amorosa se desenvolve, o traficante consegue transportar a vítima para outro local e, a partir daí, passa a explorá-la sexualmente. Sujeitas a diferentes níveis de vitimização são empurradas pela coação, em toda a sua violência, quando raptadas e levadas pelo engano, ou arrastadas e iludidas com promessas de trabalho legal. Eis senão quando chegam e são surpreendidas com a sua inserção no mercado de exploração sexual, nos bares, e por aí. Acenam-lhes com trabalho como «dançarinas» ou «strippers» na denominada «indústria do entretenimento», mas que se descobrem, posteriormente, submetidas à exploração sexual e em condições aviltantes de subjugação e subordinação.

De acordo com a ONUDC (Escritório das Nações Unidas sobre Drogas e Crime), mulheres e meninas compõem a vasta maioria das vítimas notificadas em todo o mundo, representando cerca de 49% e 21% respectivamente. Uma característica interessante destacada por essa entidade sobre o envolvimento de mulheres no tráfico de pessoas é que, além de serem as principais vítimas em termos numéricos, as mulheres também são personagens activas e importantes no recrutamento de outras mulheres. Uma possível explicação para esse número expressivo de mulheres como sujeitos activos do tráfico de pessoas é a relação íntima ou mesmo de parentesco com os traficantes. Circunstâncias várias, o medo da deportação no caso de migrantes, o temor de represálias, levam-nas a esconder e a calar, a silenciar e não denunciar. Não denunciam, não se sentem suficientemente seguras e autónomas para procurar o Estado a fim de reportar os fatos criminosos. Mas também se sabe que, em muitos casos, as vítimas não se enxergam como tal, tampouco se vêm em condições de exploração. Isso ocorre, particularmente, quando estão envolvidas emocionalmente com seus algozes ou quando estão ganhando mais dinheiro do que conseguiriam ganhar nos seus países de origem.

Da exploração e desrespeito pela condição humana ao lucro desmedido

Do mesmo modo que acontece com o mercado internacional de drogas e de armas, a busca pelo lucro é, sem dúvida, o grande motivo impulsionador do tráfico humano.

Com pessoas cada vez mais vulneráveis à exploração, os exploradores vão à procura continuamente de fontes de mão-de-obra mais baratas. Segundo alguns estudiosos da matéria, o tráfico de seres humanos torna-se um mercado cada vez mais lucrativo devido à procura de serviços prestados por pessoas traficadas. Associado a isto há uma generalizada cultura da tolerância à exploração sexual bem como à flexibilização e precariedade do emprego, formal ou informal, que é o rasto de um sistema económico pardo e corrupto que se pretende naturalizar, com homens e mulheres a poderem ser assediados e escravizados.

O tráfico assenta na maioria dos casos na necessidade de sobrevivência face à oportunidade de melhores empregos nos países de destino e a outros factores de atracção nos países mais ricos, que têm necessidade de mão de-obra barata, pouco instruída, apta e disposta a aceitar condições de trabalho normalmente rejeitadas por cidadãos locais. Condições estas que alimentam as redes de tráfico.

As vítimas do tráfico são quase sempre indivíduos vulneráveis, que vivem em circunstâncias pessoais muito adversas. Os recrutadores do tráfico aproveitam-se dessas circunstâncias e situações pessoais complicadas para manipular as vítimas e encorajá-las a assumir posições e iniciativas arriscadas, frequentemente baseadas em promessas de uma vida melhor (Europol, 2016).

Os conceitos ligados ao tráfico, à prostituição, à igualdade e outros, não são, por um lado, nada consensuais e, por outro, estão sendo contaminados, influenciados e manipulados pela estrutura neoliberal da economia que, ideologicamente dominante, arrasta mudanças de linguagem que vão contextualizar e justificar os seus interesses.

«As vítimas do tráfico são quase sempre indivíduos vulneráveis, que vivem em circunstâncias pessoais muito adversas. Os recrutadores do tráfico aproveitam-se dessas circunstâncias e situações pessoais complicadas para manipular as vítimas e encorajá-las»

A linguagem transforma comportamentos em função do mapa ideológico que partilhamos: colaboradores em vez de trabalhadores e trabalhadoras do sexo em vez de prostitutas (já não meretrizes ou toleradas como no século XIX, ou no tempo da escuridão fascista). A igualdade de género que significa tudo mas oculta a palavra mulheres, porque essas, discriminadas de longa data, têm sido e são os sujeitos de acção eventualmente transformadora, é uma linguagem que esconde a exploração, o sacrifício, o traumatismo de quem entra ou sai da prostituição, o negócio do tráfico ou do sexo, em que elas, as mulheres, são a maioria. Linguagem que esconde também a exploração, a violência sexista e a servidão de quem trabalha em condições sub-humanas.

Importa também relevar as questões que as zonas fronteiriças colocam e que exigem políticas de cooperação entre entidades várias, embora reconhecendo que a redução das distâncias virtuais entre os países e o esbatimento de suas fronteiras tenham facilitado a prática do tráfico de pessoas.

Com a internet, o espaço deixou de ser obstáculo. A internet encurta distâncias, mas cria novas violências. A ciberviolência e todas as violências nas redes sociais são hoje perigosamente factores de agressão, alimentam a pornografia e geram nas crianças problemas graves de autoreconhecimento.

Quando tanto se pugna pelas liberdades colectivas e individuais, e se apela crescentemente ao respeito dos direitos fundamentais e pela autodeterminação dos povos, o tráfico de seres humanos apresenta-se como um dos crimes mais graves da humanidade. Põe em causa a dignidade humana, a inviolabilidade da integridade física e moral das vítimas, a sua liberdade e autodeterminação pessoal, valores inestimáveis para cada ser humano e para a existência de sociedades livres e justas.

O que falta fazer?

Não falta legislação, antes determinação política para encarar de frente um problema com impactes sociais e pessoais, mas também morais, económicos e financeiros de uma sociedade em declínio de valores. Aliás, existem documentos fundamentais sobre o tráfico desde a Convenção das Nações Unidas de 1949 para a supressão do tráfico de pessoas e da exploração da prostituição de outrem.

«Não falta legislação, antes determinação política para encarar de frente um problema com impactes sociais e pessoais, mas também morais, económicos e financeiros de uma sociedade em declínio de valores»

Várias convenções internacionais ratificam a gravidade do fenómeno, tratam-no como crime com consequências psicológicas e sociais nefastas e apontam medidas de prevenção e combate a serem levadas pelos Estados. O Plano de Acção Mundial das Nações Unidas aprovado em 2010 traça metas e é avaliado de quatro em quatro anos. Recentemente, em 7 Junho de 2021, no quadro dessa avaliação, a Assembleia-geral das Nações Unidas adoptou uma Declaração Política 2021 sobre a aplicação deste Plano na qual, por unanimidade, os seus membros declaram mais uma vez a sua firme vontade política de agir resolutamente e coordenadamente para pôr fim a este crime odioso.

Nesta declaração, a Assembleia-Geral das Nações Unidas (AGONU) reafirma a vontade de regular problemas sociais, económicos, culturais e políticos e outros que exponham as pessoas ao tráfico, como são a pobreza, o subdesenvolvimento, a migração irregular, o desemprego, as desigualdades, a desigualdade de género, as violências sexuais, a discriminação e ainda a marginalização, a estigmatização, a corrupção, as perseguições, as situações de emergência humanitária, os conflitos armados e as catástrofes naturais. Além disso, decide intensificar esforços para assegurar a justiça e a protecção das vítimas e confere que os recursos destinados a esta luta à escala mundial não estão adaptados à amplitude do problema.

Na avaliação do Plano fica claro que os migrantes são a população mais exposta ao tráfico de pessoas e nomeadamente ao trabalho forçado. No que se refere às mulheres, a relatora da avaliação conclui que o crime prossegue com toda a impunidade. As mulheres e as meninas estão expostas à exploração e muitas vezes a «formas múltiplas e conjugadas» de exploração. Salienta ainda que a pandemia agravou a pobreza e o desemprego de forma desproporcionada entre as mulheres e as meninas.

Os membros da AGONU sublinharam a importância de lutar contra as causas profundas do tráfico, como a procura, as desigualdades sociais e económicas no mundo e instaram os governos a investir nas pessoas, nomeadamente com educação, emprego, cuidados de saúde e com meios de subsistência.

Quanto à exploração sexual de mulheres, crianças e meninas, são assinalados explicitamente problemas e lacunas persistentes, mesmo reconhecendo progressos nos últimos 20 anos quanto ao reconhecimento do crime. De facto, no último relatório da ONUDC, 50% das vítimas detectadas foram para fins de exploração sexual.

A causa primeira do tráfico continua a ser a pobreza, mas importa dar visibilidade ao problema da prostituição

Porém, as organizações de mulheres levantam também nesse fórum internacional a importância de dar visibilidade ao problema da prostituição, exigindo que o tema seja incluído nos programas e estratégias para 2030 e que sejam ouvidas as mulheres traficadas e prostituídas.

Nada de novo, mesmo em relação ao incumprimento das resoluções da ONU pelos Estados-membros. É uma democracia com os seus revezes, relações desiguais e laivos de autoritarismo e dominação de uns sobre os outros, que põem em causa a perspectiva de multilateralismo actualmente defendida, que assegure oportunidades iguais a todos os Estados.

«Nada de novo, mesmo em relação ao incumprimento das resoluções da ONU pelos Estados-membros. É uma democracia com os seus revezes, relações desiguais e laivos de autoritarismo e dominação de uns sobre os outros, que põem em causa a perspectiva de multilateralismo»

No que concerne ao trabalho, a OIT também ergue a sua voz pela prevenção e apoio aos trabalhadores migrantes, contra as práticas abusivas de trabalhos forçados e sem condições. Note-se, a importância que é dada neste quadro ao tráfico de mulheres para trabalhos domésticos, sob forma de internato, que esconde a servidão e a escravatura do séc. XXI.

Em Portugal, na defesa da Estratégia Europeia de combate ao tráfico de seres humanos para o período 2021-2025, o governo fala de políticas migratórias, humanistas e inclusivas, em cooperação com os países vizinhos. São termos interessantes, mas demasiado genéricos. Importará prosseguir e acompanhar as políticas públicas que terão que ser, não apenas inovadoras no plano tecnológico para melhoria da investigação, mas também com recursos e meios para que a investigação seja mais eficiente e o apoio às vítimas rápido permitindo-lhes autodeterminação e independência, sem restrições.

Portugal tem leis e planos próprios para o combate ao tráfico de seres humanos (TSH) alinhados com a União Europeia. O IV Plano de TSH de 2018-2021, da responsabilidade da Comissão para a Cidadania e a Igualdade de Género (CIG), está em avaliação, esperando-se que o próximo plano consagre algumas das medidas do Relatório sobre a igualdade entre homens e mulheres na União Europeia no período 2018-2020, da Comissão dos Direitos das Mulheres e da Igualdade dos Géneros do Parlamento Europeu, aprovado em Outubro de 2021, cuja relatora foi a deputada comunista Sandra Pereira e do qual sublinhamos alguns aspectos:

- exercer direitos e participar em igualdade é uma legítima aspiração das mulheres, mas o exercício desses direitos, bem como a participação em condições de igualdade, estão por cumprir;

- o tráfico de seres humanos é um fenómeno fortemente marcado pelo género, tendo quase três quartos das vítimas registadas na UE sido mulheres e raparigas, traficadas predominantemente para fins de exploração sexual;

- o tráfico de seres humanos constitui uma faixa crescente da criminalidade organizada e uma violação dos direitos humanos;

- 78 % de todas as crianças traficadas são raparigas e 68 % dos adultos traficados são mulheres;

- a exigência de uma resposta comum da UE, face ao carácter transfronteiriço da cyber violência contra as mulheres e as raparigas;

- a exigência de os Estados-membros criarem programas de prevenção, nomeadamente medidas educativas dirigidas aos jovens através da sensibilização para os preconceitos instalados acerca das responsabilidades em matéria de prestação de cuidados, para a igualdade entre homens e mulheres, o respeito mútuo, a resolução não violenta de conflitos nas relações interpessoais, a violência com base no género contra as mulheres e o direito à integridade pessoal.

O Relatório, salienta ainda, por um lado, que a exploração sexual constitui uma grave forma de violência que afecta maioritariamente mulheres e crianças, que o tráfico de seres humanos para fins de exploração sexual, especialmente de mulheres e crianças, é uma forma de escravatura, uma afronta à dignidade humana que está a aumentar a nível mundial, alimentada pela crescente criminalidade organizada cada vez mais lucrativa. Por outro, a necessidade de os Estados-membros garantirem um financiamento adequado para o apoio social e psicológico e o acesso a serviços públicos por parte das vítimas de tráfico ou exploração sexual e a serviços especializados dedicados à inclusão social de mulheres e raparigas vulneráveis.

Em síntese, o trafico de seres humanos é um problema real de exploração laboral e de exploração sexual. De abordagem delicada e difícil, mas pelas gerações futuras que respeitamos, há que discutir, intervir e agir. Os direitos humanos são letra viva e actuante. E na defesa dos direitos humanos, ainda que complexos, todas e todos somos poucos.

Regina Marques, dirigente do MDM
 

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