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A origem da literatura – breve homenagem a Giovanni Ricciardi

O contributo que Giovanni Ricciardi deu para um itinerário de Joaquim Soeiro Pereira Gomes é insubstituível. Em momento algum houve uma tentativa de relativizar a profunda ligação entre literatura, convicções políticas e militância.

Créditos / AISPEB

«Apanhei o comboio, fui a Alhandra e, com as Obras na mão, comecei a perguntar pelo escritor Soeiro Pereira Gomes. Alguns ouviam a pergunta e seguiam, outros respondiam que desconheciam esse nome, até que um rapazola, Francisco José Calçada, me levou à casa de alguém que, disse ele, sabia tudo. Foi assim que conheci o primeiro casal alhandrense: Beatriz e Severiano Falcão e, logo depois, também Júlio Graça, escritor da terra, e muitos outros. Visitei Alhandra, conheci os esteiros, os telhais, o Tejo, os barcos e os pombais. E comecei a minha pesquisa, que continuei nas férias de 1969, 1970 e 1971.»

É assim que o italiano Giovanni Ricciardi (1937-2023) inaugura a obra biográfica do escritor neorrealista Soeiro Pereira Gomes. Mas aquilo que parece o início de uma viagem, é apenas parte de um percurso de enorme relevância para a infraestrutura do conhecimento biográfico e literário, que nos ajuda a compreender as circunstâncias e a realidade material em que as obras são pensadas e escritas. Foi esse o desafio que Ricciardi decidiu abraçar desde muito cedo e em que se cruzou, numa feliz circunstância, com o neorrealismo e com a realidade do povo português. 

Giovanni Ricciardi licenciou-se na Universidade de Roma em 1968 e integrou o Instituto de Alta Cultura e da Fundação Gulbenkian de Lisboa como bolseiro de Sociologia, desenvolvendo um interesse muito específico pela Sociologia da Literatura e acabando por publicar pela Europa-América, em 1971, uma obra exclusivamente dedicada a este tema.

A Ricciardi interessava, sobretudo, a sociologia do autor, a sua origem social, as suas circunstâncias, a condição económica, a formação. Quando descobre Soeiro Pereira Gomes percebe que neste autor se concentra um conjunto de características que validam e enriquecem aquilo que, então, receava ser uma metodologia frágil. Ainda que no estertor do fascismo português, Ricciardi embarca na tentativa de traçar uma biografia de Soeiro, numa época em que, como disse Carlos de Oliveira, os autores não tinham biografia, eram icebergs, submersos à força por uma terrível repressão. 

«A Ricciardi interessava, sobretudo, a sociologia do autor, a sua origem social, as suas circunstâncias, a condição económica, a formação. Quando descobre Soeiro Pereira Gomes percebe que neste autor se concentra um conjunto de características que validam e enriquecem aquilo que, então, receava ser uma metodologia frágil.»

Ao longo dos anos de 1970, Giovanni Ricciardi vai explorar uma linha de estudo e trabalho sobre a América Latina e o sindicalismo, concentrando-se, sobretudo, na literatura brasileira, com a qual irá, também, ganhar muitas afinidades, estabelecendo laços que o levarão ao reconhecimento como crítico literário daquele lado do atlântico. Apesar de, ainda nessa época, se dedicar ao ensino em colégios italianos, é no ensino da literatura brasileira e portuguesa que se destacará, mais tarde, nas Universidades de Bari e de Nápoles.

Regressará a Portugal já no final dos anos de 1980, onde um conjunto de amigos com ligações ao PCP, de onde se destaca essa figura dedicada à cultura de Vila Franca de Xira, António Dias Lourenço, o ajudarão a retomar a sua pesquisa sobre Soeiro Pereira Gomes. E esta foi uma pesquisa necessária, dada a escassez de documentação que tinha sido agrupada até então. O contributo que Giovanni Ricciardi deu para um itinerário de Joaquim Soeiro Pereira Gomes é, por isso, insubstituível, até pelo seu rigor e honestidade. Em momento algum, como tantas vezes acontece hoje com autores contemporâneos de Soeiro, houve uma tentativa de relativizar ou desvalorizar a profunda ligação entre a literatura, as convicções políticas e a militância. Para Ricciardi essa era a biografia verdadeira, que iluminava o que tantas vezes está escondido nas sombras da criação artística. 

Créditos

É por esta altura que, com os contactos em Vila Franca de Xira, Ricciardi vai conhecer o Museu do Neo-Realismo, iniciando aí uma relação de mais de três décadas, da qual sairão grandes contributos para o desenvolvimento deste museu e que alargarão e muito o âmbito do seu alcance. Vejamos, por exemplo, o que escreveu Urbano Tavares Rodrigues no prefácio de Soeiro Pereira Gomes – Uma biografia literária, de Giovanni Ricciardi, numa edição da Página a Página, com apoio do Museu do Neo-Realismo:

«Ao apurado senso crítico que leva este sociólogo da literatura a valorizar a arte narrativa de Soeiro e a beleza do seu estilo, enquadrando o jovem escritor nos espaços humanos e geo-económicos onde a sua existência decorreu e se formaram a sua consciência cívica e o seu gosto decisivo pela escrita, com forte inclinação poética, acresce a forma como Giovanni Ricciardi, sinteticamente, elabora o quadro irrisório e sombrio do fascismo português, com as suas zonas de treva e os seus compromissos e hipocrisias.»

A sua relação com Soeiro Pereira Gomes não se esgotou nesta biografia. Ainda recentemente, as Edições Avante publicaram Um Escritor sem Tempo – Cartas Familiares de Soeiro Pereira Gomes, obra anotada por Ricciardi. 

Giovanni Ricciardi deixa-nos, para além de um conjunto de obras essenciais para a sociologia da literatura, uma oportunidade para continuarmos a explorar a biografia dos autores, enquadrando a sua obra no seu tempo de vida, nas condições históricas e materiais em que viveu e desenhar, com isso, um retrato mais rico da realidade dos povos e de tudo o que determina essa realidade. 

Despedimo-nos esta semana deste intelectual de grande generosidade que foi, até ao fim dos seus dias, um cúmplice da cultura luso-brasileira e um dos seus mais queridos divulgadores. 


O autor escreve ao abrigo do Acordo Ortográfico de 1990 (AO90)

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