|Manuel Gusmão

Manuel Gusmão, «contra todas as evidências»

Manuel Gusmão alia, de forma exemplar, a dimensão política e a dimensão poética, reclamando para a poesia e para as artes um lugar no mundo

Manuel Gusmão, c. 2016.
Créditos / Revista Caliban

Em 1990 é publicado um livro, Dois Sóis, A Rosa a arquitectura do mundo, que revela o que se suspeitava mas não se conhecia: Manuel Gusmão-poeta. Publicado quando já tem 45 anos, os poemas, pelas datas indicadas nos cinco «capítulos» do livro, já tinham sido escritos em anos anteriores, de 1969 a 1986. É uma brilhante estrela que descola da constelação da poesia portuguesa para a iluminar exuberantemente e anunciar um poeta singular que imediatamente se coloca entre os maiores poetas portugueses, em particular os nossos contemporâneos.

Manuel Gusmão já era bem conhecido do universo literário não só como professor na Faculdade de Letras, marcando várias gerações, em que se destacou pelo modo com transmitia saberes, conhecimentos e abria novos caminhos na interpretação dos textos, mas também como ensaísta e crítico literário, actividade que tinha iniciado no jornal Crítica, com Eduarda Dionísio, Jorge Silva Melo e Luís Miguel Cintra que, nos anos sessenta, rasgaram novas perspectivas de leitura.

Com Manuel Gusmão aprendia-se e aprende-se, tal como com Maria Filomena Molder, Rosa Maria Martelo ou Silvina Rodrigues Lopes, para referir alguns dos mais notáveis ensaístas dos últimos decénios, a pensar, a questionar as artes, a poesia, a palavra.

Distingue-se por aliar a essa produção crítica e literária uma actividade política militante continuada no Partido Comunista Português, por se colocar sem falhas nem hesitações na «tradição dos oprimidos»: «Nós, na "tradição dos oprimidos" (Walter Benjamin), aprendemos a não ceder aos desastres, aprendemos a trabalhar para estoirar o tempo contínuo das derrotas e a perscrutar os momentos em que algo de diferente foi possível, mesmo que por umas semanas ou meses ou décadas. O trabalho da esperança que magoa ensina-nos que o que foi possível, e logo derrotado, será possível (de outra forma), outra vez» (Manuel Gusmão, Uma Razão Dialógica. Edições Avante).

Em toda a sua obra de ensaísta, crítico e poeta, Manuel Gusmão nunca se isola do mundo, acreditando e demonstrando que a actividade intelectual do académico, do ensaísta, do crítico, e a inventividade do poeta a par da política, têm lugar no mundo e devem intervir no mundo sem se mutuamente colonizarem, mas sem nunca se alhearem. O mundo é a sua tarefa e o seu tempo é sempre um tempo de resistência, o que transmite em todos os seus textos com uma rara clarividência e criatividade, um rigor extremo. Desinquieta-nos no modo como pensa e fala sobre o nosso tempo, para lá do nosso tempo, numa permanente insubordinação «contra todas as evidências», contra as opressões de geometrias variáveis, que são o estado de sítio em que estamos mergulhados e onde nos querem fazer permanecer mergulhados, que contamina muitos discursos intelectuais e literários que se apartam das circunstâncias para se protegerem e dissimularem o vazio de uma sociedade sem dignidade que não tem dignidade para oferecer, o que lhe é completamente estranho e o indigna. É uma constante em todos os seus textos, os que têm sido publicados em livros e nos muitos sobre literatura, cultura, artes e política, dispersos por vários jornais e revistas, nomeadamente na Vértice, Seara NovaCaderno Vermelho e Militante, onde, com o rigor de um pensamento estruturado sem fissuras ancorado numa extensa cultura, o colocam entre os maiores intelectuais portugueses. Textos que a par das entrevistas que tem concedido, leia-se atentamente a que em 2016 deu à revista on-line Caliban, mereciam ser organizados numa publicação.

«Um dos princípios do humanismo comunista é a ideia de que o desenvolvimento de cada um e o desenvolvimento de todos se potenciam mutuamente. Falar de cultura, reivindicar cultura, lutar pela cultura, sim; mas é preciso ao mesmo tempo meter as mãos na massa: fazer cultura.»

Manuel Gusmão, Caderno Vermelho, 2008

Manuel Gusmão tem o destemor de pensar e interrogar o nosso tempo e de transmitir isso nos seus textos, em particular os poéticos, o que é mais raro, quando o pensamento actual é esquálido, muitas vezes enredado nos labirintos em que se torna pueril, mesmo inútil. Com ele, os intelectuais e os poetas readquirem o seu lugar no mundo e a poesia o de um laboratório da experiência histórica que não se limita a interpretar passado e presente, aponta para o futuro, «contudo não há experiência histórica, não há história sem a categoria do futuro, mesmo que essa categoria seja a de uma falta ou ausência, que se desloca e move no passado a reconstruir, e no presente que reencena o passado». O que faz de forma exemplar quando «canta a contingência do comunismo que vem», sempre a irromper para lá do imediatamente visível, «Nós continuamos; dê por onde der/ nós temos alguém à espera lá fora ou aqui/ dentro do que em nós hesitante e ameaçado/ é entretanto um canto», assumindo a poesia como a «radical liberdade de linguagem» sempre tendo presente que «há pessoas que são expropriadas dos seus possíveis humanos e da sua própria voz». A eles, a todos nós Manuel Gusmão devolve e dá voz «O poema é quem responde ou ninguém…/ou talvez lhe possam responder aqueles que/ de viva voz por si respondem / Sua ou deles, ameaçada sempre será a resposta».

Manuel Gusmão politiza a poesia, sem dar qualquer espaço para que a política vulgarize a palavra poética, o que faz com a lucidez ímpar de que tem o conhecimento fundo da precariedade das palavras «o poema pode acender-se no brilho cego de uma absoluta necessidade, ou no estremecer de uma certeza sem garantias», submetendo-as à joeira de uma lucidez vigilante e sem tréguas que as faz transpor sem passaportes aquela linha de fronteira que o poder dominante quer inultrapassável para limitar o infinito, impedindo-as de alimentar um desejo de vida, de mundo e de futuro que é pulsão da sua poesia.«Quem somos nós? Nós somos a esperança que não fica à espera».

Manuel Gusmão, ergue a sua voz, de raro calibre, contra o desconcerto do tempo presente, imerge na memória histórica, literária, filosófica e política para nos convocar, convocar a humanidade para o devir histórico: «Quem pode ser no mundo tão quieto/ Que o não movem nem o clamor do dia/ Nem a cólera dos homens desabitados/ Nem o diamante da noite que se estilhaça e voa/ Nem a ira, o grito ininterrupto e suspenso/ Que golpeia aqueles a quem a voz cegaram/ Quem pode ser no mundo tão quieto/ Que o não mova o próprio mundo nele».

«Para nós, [...] a Cultura deve assumir o seu papel, que digo de forma abreviada: jogos de linguagem que fazem e refazem este nosso mundo e os outros possíveis; jogos de linguagem que imaginam formas de vida, técnicas do corpo, que modelam e remodelam os nossos sentidos. Que nos transformam naquilo que somos, que nos tornam humanos.»

Manuel Gusmão, Seara Nova, 2014

Manuel Gusmão alia, de forma exemplar, a dimensão política e a dimensão poética, reclamando para a poesia e para as artes um lugar no mundo: «Uma arte (a literatura), assim como as outras artes, é tendencialmente, através das múltiplas diferenças, um processo de construção, ou melhor, de configuração antropológica aberta: ou seja, na(s) arte(s) e através dela(s), construímos figuras mutáveis do humano que os tempos vão acumulando como hipóteses e experimentos disponíveis para nos imaginarmos e, no limite, nos transformarmos a nós mesmos».

No seu mais recente livro de poesia publicado, A Foz em Delta, afirma, num magnifico texto : «A poesia pode ser uma forma de resistência. Pode sê-lo. Sempre por definição, ou seja, em determinados contextos, sociais, políticos, culturais. Hoje, em alguns lugares em que a história da modernidade de longa duração continua a vir e a inscrever-se nos tempos, alguma poesia continua a resistir. Ela resiste à quantidade de barbárie que em cada tempo insiste. Ela lê em cada tempo quais as ameaças e, consoante o seu teor, o seu perigo, por um lado, o seu modo de oposição e o desejo que trabalha a poética, responderá. Ela preserva, assim, aberto ao humano, o reino da possibilidade e das transformações. Dizer que a poesia resiste é afirmar que ela é uma específica resistência à sua completa apropriação pela mente ou pelo espírito. É pensar a materialidade do seu fazer (poiesis e poiema), retirando-a do campo de acção de qualquer política do espírito».

Manuel Gusmão, inscreve-se na longa linhagem de poetas que «são verdadeiramente aquele(s) que rouba(m) o fogo». Os que traçam «as cartografias ou marcos de resistência que nos permitem mapear a rede de opressões, a fisionomia por onde a barbárie se acende, tentar perceber as diferenças dos tempos».

Manuel Gusmão, um poeta, um ensaísta, um crítico literário que se lê e relê sempre, sem desbaratos de tempo.


Breve bibliografia de Manuel Gusmão

Neo-Realismo, Uma Poética do Testemunho, 2018

A Foz em Delta, Edições Avante, 2018

Contra Todas as Evidências-Poemas Reunidos III, Edições Avante, 2015

Contra Todas as Evidências-Poemas Reunidos II, Edições Avante, 2014

Contra Todas as Evidências-Poemas Reunidos I, Edições Avante, 2013

Pequeno Tratado das Figuras, Assírio e Alvim, 2013

Uma Razão Dialógica, Edições Avante, 2011

Tatuagem e Palimpsesto, Assírio e Alvim, 2010

Finisterra, o Trabalho do Fim: reCitar a Origem, Angelus Novus, 2009

A Terceira Mão, Editorial Caminho, 2008

Migrações do Fogo, Editorial Caminho, 2004

Os Dias levantados, Editorial Caminho, 2002

Teatros do Tempo, Editorial Caminho, 2001

Mapas, o Assombro, a Sombra, Editorial Caminho, 1996

Dois Sóis, A Rosa a arquitectura do mundo, Editorial Caminho, 1990

com Jorge Silva Melo, Da República e das Gentes, Bicho de Mato, 2011

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