|Feira do Livro de Lisboa

Fahrenheit 451 na Feira do Livro de Lisboa

A miserável queima de cem milhões de livros na Ucrânia emparceira com outras fogueiras célebres. É isso que, queiram ou não os seus promotores, o pavilhão da Ucrânia na Feira de Lisboa acaba por celebrar.

Lucio Massari (Bolonha, 1569-1633), «São Paulo, em Éfeso, exorta a queimar os livros heréticos», c. 1612. Óleo sobre tela, 193 x 277,5 cm. A obra integrou a colecção da Casa dos Príncipes de Liechtenstein de 1811 a 2008, quando foi leiloada pela Christie’s. Desde 2008 na Galeria Fondantico, de Tiziana Sassòli, em Bolonha
Créditos / Finnestre sull'arte

A estranheza desta edição da Feira do Livro de Lisboa é a de celebração de Fahrenheit 451, a temperatura do fogo a que ardem os livros, a temperatura com que foram incinerados cem milhões de livros sacrificados pelo actual governo ucraniano numa pira purificadora cujas chamas iluminam e continuarão a iluminar o teleponto onde diariamente o seu presidente, fazendo uso dos seus dotes histriónicos, quer fazer convencer os milhões de espectadores, que em todo o mundo são submetidos à audição dessas conversas em família, de uma realidade que a realidade vai desmentindo, sem que os jornalistas e editorialistas que as divulgam e que se deveriam obrigar a um mínimo de sentido crítico as questionem, por mais ridículas e inverosímeis que sejam.

Nada de novo, a não ser a intensidade de uma propaganda que não tem comparação nem quaisquer precedentes em nenhuma outra época da história e até ridiculariza e torna rudimentar o número realizado por Colin Powell no Conselho de Segurança da ONU a exibir provas factuais das fábricas de armas de destruição maciça que não existiam no Iraque de Saddam Hussein.

O efeito pretendido pelo comediante presidente, ao diariamente simbolicamente se vitimizar como se fosse a incarnação da Ucrânia, enquanto apresenta vitórias significativas sobre o seu bárbaro invasor capaz de atrocidades e brutalidades inomináveis sobre os virtuosos e indefesos ucranianos, tem-lhe rendido os dividendos de um apoio militar, económico e moral praticamente ilimitado que lhe entra pelas portas que os EUA/NATO e a Europa lhe escancararam e que continua a alimentar a corrupção endémica da Ucrânia, como se vai percebendo por um contrabando de armas que já não é possível ocultar.

A máquina de propaganda contínua é tão activa e eficaz que nenhum detalhe é desdenhado, como é bem exemplificado pela reportagem fotográfica da Vogue, em que o casal Zelensky assegura um futuro no mundo dos famosos e do mercado de luxo, qualquer que seja o desfecho da guerra da Ucrânia, o que também terá efeitos positivos em volume que certamente será ocultado nas contas em paraísos fiscais que o presidente já possuía antes da guerra eclodir ou outras que venha a abrir.

A guerra, com o seu rol de crueldades e barbaridades, sempre reprováveis qualquer que seja o ângulo porque seja analisada e cujo desencadear é inapelavelmente condenável, por mais complexo que seja o contexto histórico em que se desamarra, acaba por se tornar um trunfo de raro quilate para alguns, com Zelensky na linha da frente.

O fulgor das chamas em que se queimaram cem milhões de livros ilumina o terror instalado, os crimes e violações dos direitos humanos sem que isso arranhe os chamados valores civilizacionais do ocidente que a ele fica cego, surdo e mudo. Ilumina as proibições de todos os partidos políticos, alguns bem próximos de outros partidos até no poder em países apoiantes da Ucrânia, reduzindo a cinzas qualquer resquício de solidariedade com os militantes desses partidos, como os portugueses tiveram a oportunidade de ver na pessoa do seu ministro dos Negócios Estrangeiros, que, sem querer saber mesmo dos que com ele comungam dos mesmos princípios, reafirmou o «apoio humanitário, económico, político e financeiro» de Portugal à Ucrânia, assegurando que se vai manter «esta ligação» sem esclarecer mas fazendo temer que Portugal acrescente mais uns milhões aos 250 milhões doados, que além de bem falta fazerem aos portugueses e aos serviços públicos coloca, se calculado em percentagem do PIB, o nosso país como um dos principais doadores, o que foi aplaudido pelo PS, PSD, IL, Chega e Livre, registe-se para memória futura.

Nada como engraxar com graxa da melhor qualidade os sapatos de Biden e Blinken, embora ninguém perceba que resultados positivos daí possam advir além de uma inflação galopante e uma crise económica anunciada. Esfarrapada e bem esfarrapada está a bandeira da miséria moral em que se queiram embrulhar.

«Ilumina as proibições de todos os partidos políticos, alguns bem próximos de outros partidos até no poder em países apoiantes da Ucrânia, reduzindo a cinzas qualquer resquício de solidariedade com os militantes desses partidos, como os portugueses tiveram a oportunidade de ver na pessoa do seu ministro dos Negócios Estrangeiros (...)»

Iluminada por essas chamas está também a total supressão da liberdade de opinião e de expressão da opinião, a suspeição generalizada, a sucessão de purgas de pessoas tidas como fiéis servidoras do país, desencadeando uma caça às bruxas com a obsessiva suspeição de colaboracionismo com as forças pró-russas que os Serviços de Segurança da Ucrânia (SBU), bem conhecidos pelos seus métodos discricionários e brutais, que até antes da guerra foram objecto de crítica nos EUA e países ocidentais, perseguem sem um segundo de pausa.

Iluminado pelas chamas em que se queimaram cem milhões de livros está agora o pavilhão da Ucrânia, que à cultura diz nada mas é convidada especial da Feira do Livro de Lisboa que se entrincheira na solidariedade com o povo ucraniano a qual, se parece uma atitude justa, acaba por ser, neste caso, um hino ao cinismo e à hipocrisia.

Num evento como a Feira do Livro, os irracionais e brutos atentados à cultura que todos os dias se perpetuam na Ucrânia não podem ser atirados para debaixo das cinzas de cem milhões de livros nem para a destruição de esculturas celebrando escritores russos e soviéticos, alguns destes nascidos na Ucrânia. A justa condenação da invasão e da guerra não pode nem deve abrir a porta do esquecimento para a destruição da cultura, para a cada vez maior aculturação com o desabrido culto da personalidade do Servo do Povo, para a enorme corrupção que campeia pelo país, nem para políticas discricionárias que têm por objectivo final suprir qualquer dissidência, espalhar o terror e o medo para submeter a mente das pessoas.

A miserável queima de livros na Ucrânia emparceira com outras fogueiras célebres em que livros foram consumidos como no incêndio da Biblioteca de Alexandria pelos romanos em 48 a.C.; a de livros islâmicos ordenada pelo cardeal Cisneros em Granada, em 1501; dos manuscritos aztecas em 1560, pelos invasores espanhóis; pelos nazis em várias cidades alemãs, em 1933; dos livros marxistas na década de 50 por McCarthy; pela queima de livros considerados subversivos por Pinochet, em 1973; os livros ímpios que o Estado Islâmico descobriu em 2015 na Biblioteca de Mossul. A lista podia ser mais longa, mas é a bastante e suficiente para colocar Zelensky em lugar destacado entre essa estirpe de gente que odeia a cultura. É isso que, mal ou bem, o pavilhão da Ucrânia na Feira de Lisboa, queiram ou não queiram os seus promotores, acaba por celebrar.

Lá estarão bem altas as chamas da queima dos milhões de livros para iluminar no pavilhão da convidada Ucrânia, o narcisismo de Zelensky a vitimizar-se para fazer pagar ainda mais cara a sua futura participação numa Vogue qualquer.

Pobre povo ucraniano cercado pelo terror da guerra que a Rússia há seis meses impôs e pelo terror de Estado que desde 2014 se vem agravando com o beneplácito do Ocidente.

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