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Nós que vimos morrer o André

Este texto é sobre um piloto que morreu. Acidente, azar, sim, também. Mas há algo de muito errado neste país e nas opções de fundo que lhe têm sido impostas. E isso é que é o contexto que importa perceber.

Uma aeronave de combate a incêndios durante o ataque ao incêndio que lavrava em Palmela, a 13 de Julho de 2022 
CréditosAntónio Cotrim / LUSA

Na música onde Zeca Afonso homenageia Catarina Eufémia pode-se escutar que «quem viu morrer Catarina não perdoa a quem matou». Como é evidente, não se refere o poeta apenas àqueles camaradas de Catarina que no dia 19 de Maio de 1954 estavam ao seu lado, em luta, e literalmente a viram cair varadas pelas balas da ditadura fascista de Salazar. É a nós todos que se nos dirige. Todos nós temos a obrigação de ter visto morrer Catarina. E de não perdoar a quem a matou: o fascismo português.

Mas este texto não é sobre Catarina Eufémia. É sobre um piloto português que morreu a combater os incêndios que se abatem sobre o nosso país. Cuja morte foi transmitida e retransmitida até à náusea por uma comunicação social nauseabunda. Que serviu de distracção nas tascas, nos cafés e nos sofás de milhares de casas.

Não se faz isto à família de ninguém, e muito menos à família de um herói. Ou não se devia fazer. Porque se faz, todos os dias. E não se pode fazer. Por tudo, e porque nas televisões transformadas em cloacas o mundo é um espectáculo de desastres sem contexto, antecâmara das explicações fáceis e demagógicas, que nada explicam, tudo escondem e todos manipulam.

«este acidente tem contexto. Desde logo, todas as negociatas em torno do ataque aéreo a incêndios. Em vez de uma entidade pública, com equipamento próprio, profissionais dedicados e bem remunerados, temos um estendal de negócios escandalosos, promessas, parcerias público-privadas, subcontratações, onde se fizeram e fazem fortunas, mas se continua sem construir a resposta possível e necessária para um eficaz combate aéreo aos fogos»

E este acidente tem contexto. Desde logo, todas as negociatas em torno do ataque aéreo a incêndios. Em vez de uma entidade pública, com equipamento próprio, profissionais dedicados e bem remunerados, temos um estendal de negócios escandalosos, promessas, parcerias público-privadas, subcontratações, onde se fizeram e fazem fortunas, mas se continua sem construir a resposta possível e necessária para um eficaz combate aéreo aos fogos. É o modelo capitalista e neoliberal, que faz ricos e ricos mais ricos, mas também aumenta o risco para os operacionais.

Sem esquecer um outro processo, que levou um capitão da Força Aérea a desta sair para poder entrar para a TAP, logo por azar nas vésperas de uma pandemia, e para mais azar ainda, nas vésperas de uma reestruturação que levou ao seu despedimento sem contemplações. «Razões

ponderosas e legítimas correlacionadas com o contexto pandémico» chamou-lhe a TAP. Chamem-lhe agora também flexibilidade laboral, a mesma que tantos apregoam para outros sofrerem na pele. Isso e a mais completa insensibilidade social. É que azares acontecem, mas com a flexibilização das relações laborais os azares esmagam quem trabalha e exoneram os exploradores.

Acidente, azar, sim, também. Mas há algo de muito errado neste país e nas opções de fundo que lhe têm sido impostas. E isso é que é o contexto que importa perceber. E alterar.

Chamava-se André, e é um herói que morreu a combater os incêndios. Morreu num acidente, e os acidentes acontecem. Ao contrário de Catarina, ninguém carregou num gatilho. Mas tal como a morte de Catarina não foi mera responsabilidade de um qualquer Carrajola, mas do fascismo português, também a morte de André nos deve alertar para os custos reais do neoliberalismo vigente.

E nós que vimos morrer o André não o podemos esquecer.

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