A compra da naturalização dos refugiados palestinianos com muito dinheiro oferecido aos países de acolhimento, mirabolantes trocas de parcelas de territórios continentais e insulares, projectos industriais e tecnológicos de encher o olho e ainda a transferência de populações integram o pacote económico do chamado «Acordo do Século» através do qual Trump e Netanyahu pretendem «resolver» o problema central do Médio Oriente – a questão palestiniana. Em termos práticos, trata-se de erradicar a nacionalidade palestiniana, isto é, os palestinianos. Uma forma de «solução final».
Embora o falhanço do primeiro-ministro israelita em constituir governo e a convocação de novas eleições em Israel tenham perturbado os planos dos dois aliados, tudo indica que a apresentação da parte económica do «acordo» continue prevista para os próximos dias 25 e 26 de Junho em Manamá, Bahrein.
Direitos «inalienáveis»
O «Acordo do Século» nada tem a ver com o resultado de qualquer negociação; tanto quanto se sabe através de fugas de informação que têm vindo a ser geridas pelos próprios autores, trata-se de um conjunto de medidas a impor a todo o povo palestiniano – dos territórios ocupados e da diáspora – para proceder, de facto, à anexação da Cisjordânia, Jerusalém Leste e Gaza e à «eliminação» do problema dos refugiados. As exigências, que significariam uma rendição total dos palestinianos e uma subversão absoluta de todas as normas internacionais aprovadas sobre a questão israelo-palestiniana, seriam acompanhadas por uma cativante movimentação de muitos milhares de milhões de dólares, além de outros incentivos, designadamente de âmbito territorial.
Todos os grupos palestinianos, sobretudo o chamado «governo autónomo» de Ramallah e o executivo do Hamas em Gaza, rejeitaram desde logo a participação na conferência de Manamá. Mahmmoud Abbas, presidente da Autoridade Palestiniana, reafirmou que os direitos do povo palestiniano são juridicamente «inalienáveis». Outros países árabes – com excepção segura dos da região do Golfo – parecem seguir a mesma posição, uma vez que é inerente à cultura árabe o facto de ser uma desonra trocar direitos por dinheiro.
«o chamado "Acordo do Século" […], em termos práticos, trata-se de erradicar a nacionalidade palestiniana, isto é, os palestinianos. Uma forma de "solução final"»
Trump e Netanyahu apostam nesta mistura «de bastão e cenoura», imposição de soluções complementada com a oferta de dinheiro, partindo do princípio de que os palestinianos serão sensíveis às promessas de uma vida melhor e «em paz» depois de 75 anos instabilidade, repressão e desenraizamento.
No entanto, em Israel não parece acreditar-se muito nisso.
«O problema é que os refugiados palestinianos são os símbolos supremos da nacionalidade palestiniana», escreve o jornal de referência Haaretz. Por isso, acrescenta, «um acordo norte-americano que confunde descaradamente a compra desse símbolo com dinheiro, mesmo que seja muito dinheiro, não pode ser aceitável para os dirigentes palestinianos na Cisjordânia e em Gaza».
Também a China e a Rússia anunciaram já que não participarão na reunião de Manamá. Moscovo fez saber, no fim de Maio, que as violações do direito internacional são «inadmissíveis».
Tese: o dinheiro compra tudo
O pacote económico do «acordo» a apresentar em Manamá prevê «resolver» o problema dos refugiados – cujo direito de retorno lhes está garantido pelo direito internacional – através da aquisição da nacionalidade dos países de acolhimento. Para tal, Trump e Netanyahu prevêem recompensar generosamente os países hospedeiros, designadamente Jordânia, Líbano, Síria, Egipto e Iraque.
Por outro lado, os territórios palestinianos seriam contemplados com investimentos em massa para o respectivo desenvolvimento, controlado por Israel e os Estados Unidos, concretizando-se assim a colonização e consequente anexação. E como Israel não aceita constitucionalmente cidadãos «não-judeus», aos palestinianos dos territórios restaria conformar-se em ser cidadãos de segunda ou seguir o caminho do exílio, isto é, da aquisição de uma outra nacionalidade.
O dinheiro para este enorme negócio teria origem, segundo as fugas de informação relacionadas com o «acordo», nas petromonarquias do Golfo, especialmente Arábia Saudita, Emirados Árabes Unidos e Qatar, em países europeus, nos Estados Unidos e outros «países ricos».
«O problema é que os refugiados palestinianos são os símbolos supremos da nacionalidade palestiniana [...] «um acordo norte-americano que confunde descaradamente a compra desse símbolo com dinheiro, mesmo que seja muito dinheiro, não pode ser aceitável para os dirigentes palestinianos»
Haaretz (Israel)
Além do dinheiro haveria outros incentivos e também pressões político-económicas sobre os elos mais fracos, como é o caso do Líbano e do Egipto. Atingidos por crises económicas avassaladoras, só terão parte das dificuldades resolvidas se aceitarem tudo quanto está previsto no «acordo».
No Líbano, sobrecarregado com uma dívida soberana de 155% do PIB, vivem mais de meio milhão de refugiados palestinianos numa população de quatro milhões de pessoas; a sua naturalização, que esbarra na própria Constituição do país, poderia abrir a porta a reivindicações de tratamento semelhante por parte dos cerca de um milhão de refugiados sírios. As ondas de choque sobre o pequeno país seriam insustentáveis; porém, no outro prato da balança estão as exigências norte-americanas e israelitas, cujas consequências os libaneses muito bem conhecem historicamente.
Outros dos incentivos com que Washington e Telavive tencionam jogar serão arranjos territoriais, que podem implicar transferências de populações para viabilizar o «Acordo do Século».
Duas ilhas por um pouco de deserto
A Jordânia é outro dos países alarmados com a hipotética naturalização de um milhão de refugiados palestinianos, mais de 60% da população nacional.
Para concretizar essa operação – que significaria a passagem à prática da recorrente ideia israelita de que a Jordânia, a «Palestina Oriental», já é o pretendido Estado Palestiniano – os Estados Unidos oferecem muito dinheiro e uma parcela de território saudita.
Para isso, a monarquia de Riade seria recompensada com as ilhas de Sanafir e Tiran, retiradas ao Egipto.
O Cairo não está em posição de oferecer muita resistência, sobretudo devido à profunda crise económica e à dependência precisamente dos países que estão na base do «acordo», os do Golfo incluídos.
Por isso, e em troca de 65 mil milhões de dólares para impulsionar a economia, o Egipto é ainda convidado a abdicar de um território ao longo da costa do Sinai entre Gaza e El-Arish, onde seria recebida parte ou a totalidade da população de Gaza, assim transferida e, eventualmente, logo naturalizada.
Como os sentimentos, interesses e raízes das pessoas e das comunidades não entraram no «Acordo do Século», presume-se que a transferência se realize à força.
Como recompensa da cedência da «Nova Gaza», o Egipto receberia de Israel um território com área semelhante situado na zona ocidental do deserto do Neguev.
O jornal Haaretz explica que, ainda como incentivo à receptividade do «acordo», está previsto o lançamento de grandes empreendimentos industriais e tecnológicos nos países envolvidos, sobretudo na zona egípcia adjacente à faixa de território destinada à população de Gaza.
Outro dos projectos miríficos seria a construção de um túnel entre o Egipto e a Arábia Saudita, com autorização de Israel e a financiar pelos «países ricos» chamados a dar corpo a esta programada «solução final» do problema palestiniano.
Depois da aplicação do «Acordo do Século», dos mais de sete milhões de palestinianos actuais restariam menos de um milhão, emparedados entre muros e colonatos avançando pela Cisjordânia. Aos remanescentes restaria, então, ser cidadãos de segunda sob o domínio de Israel ou exilar-se, ou seja, abdicar da sua nacionalidade – que assim se extinguiria.
Como os palestinianos não estão de acordo com o «acordo» e o direito internacional também não, qual será o passo seguinte de Netanyahu e Trump, neste caso representado pelo genro e conselheiro, o sionista Jared Kushner?
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