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Privatizar a Guerra

A existência de empresas de mercenários com dimensão para privatizar uma guerra é um sinal da ligação entre a guerra e interesses económicos privados e um motivo de preocupação para os amantes da paz.

Mercenários da Spear ao serviço dos Emiratos Árabes Unidos
CréditosFonte: Buzzfeed News

A ficção oferece exemplos de mercenários heróicos e defensores do bem, como em Os Sete Samurais, de Kurosawa, ou na série televisiva Soldados da Fortuna (The A Team). Na verdade, a história de soldados a soldo, dispostos a lutar onde e para quem paga melhor é plena de episódios onde figuras ou nações ricas contratam mercenários para impor a sua vontade, reprimir, conquistar e aniquilar. A título de exemplo, recorde-se o uso dos gurkhas nepaleses pela Companhia das Índias Ocidentais, ou da Pinkerton, uma força privada de segurança dos EUA usada por vários empresários, incluindo Andrew Carnegie, para combater o movimento de trabalhadores, incluindo infiltrar sindicatos, intimidar «agitadores», proteger os fura-greves e reprimir grevistas.

À semelhança de outras áreas de actividade económica, também os mercenários, nas suas diferentes formas, têm ganho dimensão e evoluído à medida que o capitalismo, e a sua fase de imperialismo, se desenvolve. A britânica G4S desenvolve actividades em 125 países (incluindo a segurança em Jerusalém Ocidental e a gestão de cinco prisões israelitas, com conhecidos casos de tortura de presos palestinianos) e emprega mais de 570 mil pessoas, sendo o segundo maior empregador do mundo a seguir à Walmart. Tudo isto apesar da Convenção das Nações Unidas sobre Mercenários, que entrou em vigor em 2001, a qual proíbe o recrutamento, treino, uso e financiamento de mercenários. Será necessário acrescentar que os EUA, Reino Unido e França, assim como a China, Rússia, Índia e Japão, são signatários?

Hoje grandes empresas colocam os seus «colaboradores» nos mais variados cenários de conflito, para executar funções distintas, desde a reparação automóvel e preparação alimentar em bases militares até segurança e assassinatos. Ainda esta semana foi reportado que os Emiratos Árabes Unidos (EAU) contrataram a Spear Operations Group – fundada por Abraham Golan, um israelita residente nos EUA – para executar um programa de assassinatos no Iémen. Um dos alvos dos mercenários estadunidenses, ex-forças especiais, foi um líder da al-Islah, organização que os EAU classificam de terrorista, mas que é reconhecido como um partido político legítimo, que se opõe à intervenção estrangeira no Iémen e conta entre os seus membros Tawakkul Karman, vencedora do Prémio Nobel da Paz em 2011. Um dos mercenários, ex-SEAL da Marinha dos EUA, Isaac Gilmore, é claro: «É possível que o alvo seja alguém que o Príncipe Herdeiro Mohammed bin Zayed não goste.» Refira-se que, desde 2009, os EUA aprovaram 27 mil milhões de dólares para os EAU em vendas de armas e «serviços de defesa».

Apesar dos muitos milhares de milhões gastos mundialmente em forças armadas nacionais e seu armamento, a área militar e de segurança privada tem crescido nas recentes décadas, ilustrando mais uma forma que o capitalismo encontrou para desviar fundos públicos para os bolsos dos privados. O exemplo anterior mostra também como o contra-terrorismo moderno se tem afastado de bombardeamentos estratégicos para a execução de indivíduos específicos, usando drones ou forças especiais. Ilustra também como as longas guerras ao Afeganistão e Iraque, a as forças especiais aí usadas, produziram indivíduos altamente treinados, prontos para serem recrutados pelas empresas privadas. Guerras que foram palco para o crescimento destas mesmas empresas, que receberem contratos multimilionários.

A empresa Blackwater1, hoje denominada Academi e tendo integrado, em 2014, o grupo Constellis Holdings, foi durante a segunda guerra ao Iraque a empresa que mais cresceu e beneficiou dos contratos públicos, e também a que mais claramente demonstrou o perigo do envolvimento de forças privadas em cenários de guerra, tendo sido documentados inúmeros casos de mortes de civis inocentes e tortura de capturados, mas também tráfego ilegal de armas e fraude.

Não estando protegidos pelas Convenções de Geneva nem podendo beneficiar dos apoios nacionais dados a ex-combatentes, estes modernos mercenários trabalhando em cenários de grande perigo físico e grande exigência psicológica carecem muitas vezes de garantias e apoios em caso de danos em combate. Por outro lado, funcionando paralelamente às forças regulares, estas empresas paramilitares funcionam à margem dos códigos que balizam a conduta das forças militares e até das leis nacionais do país de origem do mercenário e empresa contratante.

Diversos incidentes associados à Blackwater e outras empresas, levaram as Nações Unidas a estabelecer um Grupo de Trabalho sobre o Uso de Mercenários, tendo este concluído que, embora estas empresas muitas vezes sejam contratadas para fazer segurança, estão a realizar tarefas militares, e alerta para as «novas formas, manifestações e modalidades» das actividades mercenárias. Nada disto impede porém o Serviço Europeu de Acção Externa (SEAE) da União Europeia de estar a decidir que empresa contratar, ao som de 100 milhões de euros, para realizar serviço de segurança no Afeganistão, país na prática ocupado pela NATO2.

Mas nada disto se compara com o plano de 5 mil milhões de dólares de Erik Prince – fundador da Blackwater e irmão da secretária de Educação de Trump, a bilionária Betsy DeVos – para privatizar a guerra no Afeganistão. Após a guerra na península Coreana, que formalmente ainda não terminou, e a guerra do Vietname, a guerra no Afeganistão é a terceira mais longa guerra em que os EUA alguma vez estiveram envolvidos (17 anos), levantando desafios militares e políticos a três presidentes. As actuais forças dos EUA no país totalizam 15 mil tropas, apoiadas por 20 mil privados (ou mercenários, paramilitares, como preferirem), o que corresponde já a uma redução desde o pico de mais de 140 mil tropas dos países da NATO em 2009/2010. Prince propõe-se substituir boa parte destas tropas por 2500 soldados das forças especiais e 6000 privados, apoiados por uma força aérea privada, eliminando as missões da NATO e apontando uma figura oficial dos EUA como «vice-rei para liderar todos os esforços do governo dos EUA e coligação – incluindo comando, orçamento, política, promoção e contratação – e reportar directamente ao presidente» dos EUA3. Segundo Prince, este plano podia acabar com a guerra em seis meses.

Prince já havia apresentado a proposta a Trump em 2017 e este e os seus conselheiros haviam então recusado a proposta. Mas face às mudanças no gabinete, Prince tem voltado a insistir na proposta durante os últimos dois meses, com várias reuniões e entrevistas nos EUA e no Médio Oriente, provocando inclusivamente uma reacção por parte do governo afegão, o qual caracterizou o plano como «destrutivo e divisivo», e que nunca permitiriam que «o combate contra o terrorismo se tornasse um negócio privado com fins lucrativos, afirmando ainda que «as forças de segurança e defesa afegãs, no quadro das leis nacionais, têm a responsabilidade e autoridade principal».

Existem algumas indicações de que Trump estará a dar alguma consideração ao plano de Prince. O Times de Londres reporta, em 5 de Outubro de 2018, que Prince atribui a recusa inicial de Trump como causada pelo rescaldo político da marcha neo-nazi em Charlottesville. Segundo Prince, Trump «disse logo a seguir “eu devia ter feito a mudança”». A substituição do comandante das forças dos EUA no Afeganistão pelo General Scott Miller, um veterano de operações especiais que serviu como fonte para as ideias de Prince, será indicação adicional de Trump estar a reconsiderar o seu plano.

Este plano em particular poderá ser ou não implementado, mas o mero facto de ser proposto – e portanto haver uma empresa de mercenários com a dimensão para privatizar uma guerra – e de estar a merecer alguma consideração é um sinal de alerta, para todos os amantes da paz, de que a interligação entre a guerra e interesses económicos privados se aprofunda, levando a novas formas de intervenção e alargamento dos conflitos no mundo.

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