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|50 Anos de Futuro

Portugal, 1969, 1973, 2023

O III Congresso da Oposição, foi, pela profundidade e expressão colectiva das suas teses e conclusões, um marco na luta do povo português por uma sociedade mais justa, livre da exploração e do colonialismo.

A carga policial sobre os participantes no III Congresso da Oposição Democrática foi captada pelo Dr. Armando Seabra, a partir do seu consultório. Aveiro, Abril de 1973
A violência fascista contra o III Congresso da Oposição Democrática, em Abril de 1973, não abalou a determinação dos democratas. A contestação ao regime iria em crescendo até ao 25 de AbrilCréditosArmando Seabra / Arquivo pessoal de Jorge Seabra

Por motivos só aparentemente aleatórios, há anos que ficam registados nas páginas douradas da memória dos povos e outros que se recordam como se tivessem sido arbitrariamente apagados.

Em termos globais, 1969, com Neil Armstrong a pisar pela primeira vez o solo lunar, está colocado, seguramente, num dos planos mais salientes do século passado.

No pequeno rectângulo luso, então mergulhado em quase meio século de ditadura, 1969 ficou ligado à esperança de mudança, criada nas almas mais crédulas, da «Primavera Marcelista» que sucedeu à queda da cadeira de Salazar, ilusão já totalmente desvanecida em 1973, com a continuação da guerra em África e a agudização da repressão.

Quanto a 1973, parece, injustamente, repousar no leito mais baço do esquecimento, apesar do auspicioso início com o acordo de cessar-fogo no Vietnam (que consagrou a derrota dos EUA e a inutilidade absurda dessa guerra que causou milhões de vítimas, considerada, na altura, essencial para a defesa do «mundo livre»), e a esperança criada com a eleição do presidente Allende, no Chile, em Março.

Na realidade, o ano que antecedeu o da nossa libertação acabou tragicamente, em Novembro, com o sangrento golpe de Pinochet financiado pelos EUA, depois travestidos em pomba da paz e campeões da democracia, com «putch´s», atentados, invasões e bombas no currículo.

Foi nesse enquadramento global que aconteceram o segundo Congresso da Oposição, em 1969, e o terceiro, em 1973, de que se comemora este ano o cinquentenário, ambos realizados em Aveiro, minha cidade natal.

Foram também (69 e 73) anos de «eleições» em que a resistência à ditadura se manifestou de forma pujante, no meio de lutas menos conhecidas travadas nos campos, nas empresas, nas universidades e nas diversas frentes da guerra colonial.

«[…] se, em 69, a «Primavera marcelista» se manteve frouxa e enganadora, em 1973, o frio invernoso estava de volta e, de primaveril, o que mais se aproximou foi o III Congresso da Oposição em Aveiro e a “campanha eleitoral”, que hoje sabemos ter sido a última antes dos cravos da libertação»

Contudo, algumas diferenças marcam o contexto sócio- político das duas datas:

Em 1969, para criar uma aparência de mudança num momento de fragilidade do regime – e face a um crescendo de greves, manifestações e actos de resistência, onde se integra a maior crise estudantil – este «adoçou» as formas mais exuberantes da repressão, de que é exemplo a prisão dos dirigentes estudantis de Coimbra pela Polícia Judiciária e não pela PIDE, então passada a «Direcção Geral de Segurança».

Em 1969 houve «conversas em família» na TV, uma «ala liberal» que prometia tíbios esboços de protesto na Assembleia Nacional do partido único («União Nacional» passada a «Acção Nacional Popular»), e acenos nos bastidores de uma eventual legalização da oposição mais cor-de-rosa, desde que se portasse bem e se demarcasse do PCP, único partido activo e organizado (na clandestinidade), por isso tratado como «associação criminosa» com direito a tortura, prisão maior e «medidas de segurança» sem limite para os seus membros.

Quanto à guerra colonial, contudo, nenhum amolecimento, nenhuma cedência, nem na aparência. Continuou a lei da rolha absoluta e a firmeza do chicote sem disfarces nem açúcar, mantendo o lema de que «a pátria não se discute», porque qualquer dúvida era «ser contra a nossa civilização e querer entregar o Ultramar aos comunistas» (que comiam criancinhas e davam injecções atrás da orelha aos velhos).

Tudo isso embrulhado num ambiente de intoxicação colectiva, em alguns aspectos similar ao que se passa actualmente com a guerra na Ucrânia que, embora sem soldados portugueses no terreno e sem PIDE, também não se pode discutir (há o agressor e o agredido e… ponto final!).

A verdade é que já então Portugal integrava a NATO (foi um dos países fundadores), organização mais interessada no anticomunismo feroz do regime de Salazar e Caetano, do que nas liberdades democráticas que tanto apregoa.

Mas se, em 69, a «Primavera marcelista» se manteve frouxa e enganadora, em 1973, o frio invernoso estava de volta e, de primaveril, o que mais se aproximou foi o III Congresso da Oposição em Aveiro e a «campanha eleitoral», que hoje sabemos ter sido a última antes dos cravos da libertação.

Democratas à porta do Cine-Teatro Avenida preparam-se para participar no III Congresso da Oposição Democrática, em Aveiro, em Abril de 1973 Créditos

É desse III Congresso que agora se comemora o meio século que passou, quase o tempo que a ditadura tinha na altura, o que dá uma ideia de como todas as crianças, jovens e adultos de então (excepto os mais velhos) tinham nascido e crescido sob o seu jugo, interiorizando como «natural» e «normal» a imutabilidade de décadas de violência e opressão.

Para os que não viveram essa longa noite, é difícil descrever as dificuldades por que passavam os que resistiam a esse domínio do quotidiano e da consciência, feito não só de repressão e censura, mas também de propaganda e condicionamento das mentes sujeitas a essa «normalidade» artificial, onde o hábito, o medo e os pequenos condicionamentos e cedências se entranhavam na carne e envenenavam o ar.

«Para os que não viveram essa longa noite, é difícil descrever as dificuldades por que passavam os que resistiam a esse domínio do quotidiano e da consciência, feito não só de repressão e censura, mas também de propaganda e condicionamento das mentes»

Nesse aspecto, o ambiente vivido nos primeiros anos da guerra colonial pelos que a ela se opunham, pode-se comparar, de certa forma, aos que, nos tempos que correm, não apoiam as provocações e a corrida armamentista da NATO e têm a coragem de criticar a ajuda bélica ao regime reaccionário, xenófobo e corrupto da Ucrânia, mesmo quando defendem a paz sem apoiarem o capitalismo autoritário de Putin.

Claro que em 1973 havia a censura assumida, a PIDE, a tortura e o risco real de prisão no Aljube, em Caxias ou em Peniche. Mas a realidade paralela descrita então na TV ou em programas de rádio como «Rádio Moscovo não fala verdade» (que negava a existência do Sputnik e aguçava os mais primários preconceitos anticomunistas contra todos os que se lhe opunham, acusando-os de estarem a soldo de Moscovo), parece ressurgir agora, a pretexto de uma guerra longínqua travada nas fronteiras da Rússia (não comunista), com a intoxicação propagandística que vitupera qualquer esboço de análise ou de contraditório, aproveitando velhos preconceitos russófobos para impor o «novo normal» das fake news a que já nos habituaram as belicosas narrativas da NATO e dos EUA.

O III Congresso de Aveiro, realizado de 4 a 8 de Abril de 1973, foi também, quanto à análise e contestação da guerra nas colónias – então apresentada pelo regime como a «defesa das províncias ultramarinas contra o terrorismo» –, um marco no avanço da Oposição à política belicista da ditadura, que procurava manter os interesses do império em África, remando desesperadamente contra os ventos da História.

Quanto a esse crucial problema, o III Congresso de Aveiro foi importante pelo acordo alcançado entre os diversos sectores democráticos na condenação da guerra nas colónias, quebrando o inicial isolamento do PCP, pioneiro na assunção de uma posição claramente anticolonial.

Assim, na «Declaração Final do III Congresso da Oposição Democrática», aprovada na sua sessão de encerramento, pode ler-se (pag. 154): «os objectivos imediatos, possíveis de atingir através da acção unida das forças democráticas, são: Fim da guerra colonial; Luta contra o poder absoluto do capital monopolista; Conquista das liberdades democráticas».

Os três «Dês» do MFA e da Revolução de Abril que aconteceria no ano seguinte – Democratização, Desenvolvimento e Descolonização – eram já aí enunciados (e metade das duas centenas de intervenções reflectiam trabalhos colectivos) dando-se outro passo em frente na caracterização do adversário principal, apontando a luta contra o poder do grande capital monopolista.

Para as gerações mais novas ou menos informadas, pode parecer estranho ou contraditório a realização de «Congressos da Oposição» e de «eleições», num país que se encontrava há muito sob o jugo de uma brutal ditadura.

«O III Congresso de Aveiro, realizado de 4 a 8 de Abril de 1973, foi também, quanto à análise e contestação da guerra nas colónias – então apresentada pelo regime como a “defesa das províncias ultramarinas contra o terrorismo” –, um marco no avanço da Oposição à política belicista da ditadura»

Mas o nazi-fascismo tinha sido derrotado em 1945 pela aliança do «Ocidente» com a União Soviética (tendo esta suportado os maiores custos humanos e materiais mas também recebido os principais louros da vitória), e o «Estado Novo» de Salazar, confesso admirador de Hitler e de Mussolini, teve de se adaptar, aceitando pintar-se com um fino verniz democrático para enganar quem quisesse ser enganado, (como os países da NATO), aproveitando o clima da Guerra Fria.

Quanto à Oposição, aproveitava esses períodos para esticar ao máximo os limites que iam sendo cedidos pela pressão da movimentação popular, não só no quadro da realização dos eventos em si (comemorações, jantares, homenagens, congressos, «eleições») mas, principalmente, pelas oportunidades conseguidas durante a sua preparação, justificando contactos, reuniões, cartazes, comunicados, manifestos e publicações, desenvolvendo uma actividade que, em tempos «normais», seria duramente reprimida.

No quadro unitário de luta legal e semilegal, em que o papel do PCP era essencial (ancorado na sua organização clandestina), jogava-se um delicado equilíbrio de estratégias contrárias: o regime encenava uma liberdade que não existia para fins de propaganda interna e internacional; os democratas aproveitavam o aliviar da pressão para reunir, mobilizar e denunciar o carácter ditatorial do regime, apresentando soluções alternativas e pressionando os limites, sem caucionar os objectivos propagandísticos do governo.

«embora permitindo a realização do III Congresso, o governo de Marcelo Caetano não deixou de utilizar as forças repressivas para dificultar o acesso aos que nele queriam participar»

Assim, embora permitindo a realização do III Congresso, o governo de Marcelo Caetano não deixou de utilizar as forças repressivas para dificultar o acesso aos que nele queriam participar, na esperança de que este se resumisse a um punhado de declarações formais de algumas personalidades, esvaziadas de profundidade e de sentido colectivo.

Repressão fascista sobre os participantes no III Congresso da Oposição Democrática, captada do consultório do Dr. Armando Seabra. Aveiro, Abril de 1973 CréditosArmando Seabra / Arquivo pessoal de Jorge Seabra

Notas ameaçadoras publicadas nos jornais e transmitidas na rádio e televisão tentaram desmobilizar os que tencionassem participar no congresso, e o regime não hesitou em, para além de prisões e proibições de todo o tipo, montar um importante dispositivo policial à volta da cidade de Aveiro, interceptando automóveis e camionetas vindas das mais diversas regiões do país, fazendo até parar comboios (como o «Rápido» Porto-Lisboa) durante horas.

O parque de campismo de Aveiro foi encerrado e divulgaram-se boatos sobre a existência de mortos e falsos apelos da organização à desmobilização dos congressistas.

Apesar disso, o governo, nada conseguiu.

A maioria das barreiras foram ultrapassadas, encontraram-se desvios por estradas secundárias, alguns continuaram a pé ou de bicicleta e, dos chegados a Aveiro, muitos encontraram abrigo em casas de democratas locais (como a dos meus pais, onde todos os cantos foram ocupados por jovens e estudantes de Coimbra) e o III Congresso foi um êxito, juntando milhares de pessoas numa festa da democracia.

No último dia, vendo frustrada a tentativa de se apresentar como aceitável aos olhos da Europa e do mundo, o regime mostrou mais as suas garras e mobilizou a polícia de choque para impedir a romagem à campa de Mário Sacramento, figura notável da intelectualidade e da democracia portuguesa, comunista, preso e torturado múltiplas vezes, inspirador dos Congressos de Aveiro, precocemente falecido em 1969.

E as muitas centenas de pessoas que se dirigiam, pela avenida principal, ao cemitério, viram-se espancados pela polícia que investiu sobre elas com uma violência inaudita.

O III Congresso da Oposição, foi, pela profundidade e expressão colectiva das suas teses e conclusões, um marco na luta do povo português por uma sociedade mais justa, livre da exploração e do colonialismo, preparando a campanha eleitoral que se iria seguir em condições particularmente duras, fazendo já adivinhar o fim da Ditadura em Abril do ano seguinte.

Um democrata que participava no III Congresso da Oposição Democrática jaz no passeio, após a violenta acção policial na Baixa de Aveiro, captada a partir do consultório do Dr. Armando Seabra. Aveiro, Abril de 1973 CréditosArman / Arquivo pessoal de Jorge Seabra

Mas, como disse Mário Sacramento no seu derradeiro discurso, em 31 de Janeiro de 1969, «onde os privilégios económicos subsistem, os direitos políticos não estão enraizados e podem ser coarctados sem dificuldade.»

Nada mais verdadeiro, nada mais actual.

Por isso, no próximo dia 1 de Abril, numa organização da União dos Resistentes Antifascistas Portugueses (URAP) comemorando os cinquenta anos da realização do III Congresso de Aveiro, alguns dos que nele participaram e muitos cidadãos que comungam os mesmos ideais, irão desfilar nessa cidade, em defesa princípios aí defendidos, cada vez mais ameaçados a pretexto da crise financeira, da Covid ou da guerra na Ucrânia.

Meio século depois, apesar dos avanços conseguidos, continua ser imprescindível a unidade na luta pela paz, pela democracia e contra o domínio do grande capital.

Jorge F. Seabra, Março, 2023

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