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CEDN: monolitismo na revisão sem cumprir a Constituição

O monolitismo é imobilismo. O monolitismo não é fonte de progresso, é de retrocesso porque o dinamismo da situação tornará rapidamente desadequada a definição daquilo a que nos propuséramos.

CréditosMarinha Portuguesa (Facebook)

Estava-se em período de férias de verão quando o Governo despachou1 o início do processo para a atualização do Conceito Estratégico de Defesa Nacional (CEDN). Como consta desse despacho vai ser um processo que levará o seu tempo, já que a lei manda que sejam ouvidos o Conselho Superior de Defesa Nacional e o Conselho de Chefes de Estado-Maior, sendo que as grandes opções terão de ser debatidas e aprovadas na Assembleia da República (AR).

O CEDN em vigor2 data de 2013. Desde essa data, Portugal libertou-se do garrote da troica, viveu a experiência dos governos do PS em minoria, reelegeu Marcelo Rebelo de Sousa para a Presidência da República, atravessou a pandemia, o PS governa com maioria absoluta e intensificou-se a guerra em solo europeu.

Sem termos ainda recuperado da crise financeira de 2007/2008, bate-nos à porta a pandemia, cujas consequências evidenciaram o «salve-se quem puder» na ação dos países da União Europeia e, no nosso caso, temos de agradecer ao Serviço Nacional de Saúde ter conseguido que as consequências não fossem mais graves (foi ver os privados fugir do seu envolvimento aos tratamentos Covid).

No que foi o início da superação da pandemia pela vacinação maciça das populações, eis-nos confrontados com o intensificar da guerra na Ucrânia e o inegável profundo impacto em todos os domínios (geopolíticos, económicos, sociais e culturais/comunicacionais). Em Portugal, sentem-se mais intensamente as consequências de continuados anos de políticas de desinvestimento e acentuada perda de soberania em inúmeras áreas, com particular destaque para a energética, a alimentar e a cultural. Neste contexto, ganha destaque a antes inimaginável campanha de manipulação da informação para nos convencer da inevitabilidade da guerra como instrumento de alcançar a paz.

Na era nuclear, não há nada de mais errado do que admitir que a guerra é o caminho para alcançar a paz.

«Neste contexto, ganha destaque a antes inimaginável campanha de manipulação da informação para nos convencer da inevitabilidade da guerra como instrumento de alcançar a paz.»

A guerra impulsionou as tensões inflacionistas e abriu espaço à voracidade insaciável dos oligopólios. Os resultados estão à vista; degradação acentuada do poder de compra, intensificação dos efeitos das insuficiências estruturais e de produção do País, crescimento da desigualdade e da pobreza e aumento das dificuldades para a esmagadora maioria do tecido produtivo do País e da sua população.

A guerra evidenciou a natureza subserviente dos dirigentes políticos europeus aos interesses inter imperialistas, em particular aos interesses do imperialismo americano. Os aplausos ao fascismo ucraniano na corrida para o massacre do seu povo e a «peregrinação» a Kiev são episódios que a comunicação social dominante enaltece, explorando a sensibilidade e as emoções do ser humano, sempre com objetivo último de normalizar o fascismo na sociedade. Os maus são os antifascistas e, no caso do Portugal de Abril, a manipulação mediática das populações acentua-se com as iniciativas de rever a história, vindas do mais alto escalão político do Estado, ao branquear e enaltecer a ação dos inimigos do 25 de Abril de 1974.

A aludida sucessão de ocorrências influirá no desenrolar do processo de revisão do CEDN, em particular no seu conteúdo. Como nelas influirão as profundas alterações emergentes da guerra de desgaste da Rússia, imposta pelos EUA em solo europeu usando a Ucrânia como ponta de lança, e os desenvolvimentos da guerra em curso com a China que se foca, de momento, nas sanções (domínio comercial, tecnológico e circulação de pessoas3).

«Os aplausos ao fascismo ucraniano na corrida para o massacre do seu povo e a «peregrinação» a Kiev são episódios que a comunicação social dominante enaltece, explorando a sensibilidade e as emoções do ser humano, sempre com objetivo último de normalizar o fascismo na sociedade.»

Para a revisão do CEDN, entendeu o Governo criar um Conselho de Revisão com a missão de elaborar uma proposta de Grandes Opções que será presente para votação da AR. Entretanto, a 20 de outubro, o Conselho de Ministros aprovou a Estratégia Nacional de Ciberdefesa e do anúncio desta decisão, cita-se: «(...) a Estratégia procura aproximar os instrumentos nacionais àqueles de organizações que Portugal integra, com destaque para o novo Conceito Estratégico da NATO e para a Bússola Estratégica da União Europeia, contribuindo também para fomentar o desenvolvimento industrial, científico e tecnológico

É um texto que veremos replicado nas grandes opções do CEDN, a serem entregues até janeiro de 2023.

Da lista de 21 nomeados para o Conselho, que funcionará sob a presidência de um ex-ministro da Defesa do PS, fazem parte personalidades várias que identificamos das áreas políticas da alternância sem alternativa, também recorrentemente designada por «centrão»4. É assim de esperar que a proposta de grandes opções para o novo CEDN, a ser entregue até 31 de janeiro de 2023, seja mais do mesmo. Com isto queremos dizer ser expectável tratar-se de um documento que replica para Portugal a partitura que o Império vem impondo aos países da NATO e da União Europeia, guerra e mais guerra, sem que se perscrute um laivo de afirmação autónoma dos interesses nacionais no quadro de referência da nossa Constituição.

Ganha assim importância acrescida reavivar o que a nossa Constituição prescreve.

A nossa Constituição define no seu artigo 9.º as tarefas fundamentais do Estado, à cabeça das quais vem «Garantir a independência nacional e criar as condições políticas, económicas, sociais e culturais que a promovam». Segue-se um desdobramento que explicita a necessidade do foco da ação do Estado na garantia e efetivação dos direitos (políticos, económicos, sociais, culturais e ambientais) e liberdades dos cidadãos e na promoção do desenvolvimento harmonioso do todo nacional.

No que respeita às relações internacionais, o artigo 7.º manda que Portugal, em pé de igualdade com os restantes Estados, e sem ingerência, promova a solução pacífica dos conflitos, a cooperação com todos os outros povos, a «abolição do imperialismo, do colonialismo e de quaisquer formas de agressão, domínio e exploração nas relações entre os povos, bem como o desarmamento geral, simultâneo e controlado, a dissolução dos blocos político-militares e o estabelecimento de um sistema de segurança coletiva, com vista à criação de uma ordem internacional capaz de assegurar a paz e a justiça nas relações entre os povos».

Mesmo que invoquemos a obrigação de Portugal em termos de solidariedade europeia e transatlântica, a Constituição estabelece que Portugal se empenha «no fortalecimento da ação dos Estados europeus a favor da democracia, da paz, do progresso económico e da justiça nas relações entre os povos». E como o artigo 273 estabelece, a defesa nacional deverá garantir «a independência nacional, a integridade do território e a liberdade e a segurança das populações contra qualquer agressão ou ameaças externas». Quem não respeita a Constituição está fora da lei, com particular gravidade se prestou juramento de a respeitar e fazer respeitar.

«O mundo vive tempos complexos e incertos, mas sempre assim foi. A diferença estará em que, hoje, demoramos menos tempo a perceber o quanto errámos.»

O leque de personalidades que o Governo escolheu para elaborar o esquiço de proposta do novo CEDN está inquinado de monolitismo. Podemos questionar como é possível essa qualificação quando se trata de 21 personalidades, 21 «sábios»5, das mais variadas proveniências. Sucede que a observação dos seus percursos e atividades permite concluir que, no essencial, leem pela mesma cartilha e não será a complementaridade que ditará a inovação.

Bento de Jesus Caraça escreveu, em 1939, «esta Europa entrou na fase central da carreira louca da morte; começou a descida aos infernos» 6. A História parece repetir-se, Este é o tempo dos monstros7. Não se cumpre a Constituição, nem se constrói a paz, promovendo a guerra.

O mundo vive tempos complexos e incertos, mas sempre assim foi. A diferença estará em que, hoje, demoramos menos tempo a perceber o quanto errámos.

O que melhor salvaguarda o interesse da paz (e esta é uma prioridade constitucional) é olhar o mundo alcançando uma visão esférica, ou seja, procurando a diversidade de visões e apreciações para que se reduzam as falhas na identificação das vulnerabilidades e riscos sejam identificados e minorados pelas contramedidas a adotar. Só assim a síntese ficará enriquecida. O monolitismo é imobilismo. O monolitismo não é fonte de progresso, é de retrocesso porque o dinamismo da situação tornará rapidamente desadequada a definição daquilo a que nos propuséramos.


O autor escreve ao abrigo do Acordo Ortográfico de 1990 (AO90)

  • 1. Despacho n.º 9986/2022, disponível aqui.
  • 2. Resolução do Conselho de Ministros n.º 19/2013, de 5 de abril, disponível aqui
  • 3. A medida mais recente foi o anúncio de retirada da cidadania americana aos cidadãos dos EUA a trabalharem na China se nisso persistissem, https://www.globalresearch.ca/bidens-tech-war-goes-nuclear/5796840 acedido em 22 de outubro de 2022.
  • 4. Os três militares que constam dessa lista não prejudicam a caracterização precedente.
  • 5. Consultado a 22 de outubro de 2022.
  • 6. Caraça, Bento de Jesus (1939), A cultura integral do individuo, problema central do nosso tempo, Nota II, edições Avante, ISBN978-972-550-564-9, agosto de 2021, página 68
  • 7. Nunes, António Avelãs (2022), O mundo velho está a morrer. O novo ainda não nasceu. Este é o tempo dos monstros. Apontamentos para compreender a Ucrâniaedição Página a Página, ISBN978-989-53709-1-7, agosto de 2022.

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