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Mulheres de todo o mundo

Será a experiência desta diferença suficientemente «diferente» para nos pôr a pensar, mais do que sobre as desigualdades que afetam as mulheres de todo o planeta, sobre as causas dessas mesmas desigualdades?

Créditos / culturgest.pt

Estreado a tempo do Dia Internacional da Mulher de 2020, Woman (Mulher) (2019) é uma montagem de entrevistas feitas a 2000 mulheres em mais de 50 países durante dois anos e meio, que sugere várias respostas, dadas em 26 línguas diferentes, à pergunta: «o que significa ser Mulher?» Os realizadores, Anastasia Mikova e Yann Arthus-Bertrand, também autores do argumento. Arthus-Bertrand é o autor de outros documentários que tomam o globo como escala e o humanismo como perspetiva, como Human (2015), Planeta Oceano (2012), ou a série de televisão Earth from above (2009) e, mais tarde, os filmes sobre Marrocos, a Argélia e Paris também «vistos do céu». Mikova, por seu lado, assina em Woman o seu primeiro trabalho como realizadora, tendo uma carreira no jornalismo de investigação que se cruzou com a de Arthus-Bertrand na já referida série Earth from above e novamente em Human, para o qual fez várias centenas de entrevistas.

Woman retoma de Human a mesma estrutura de entrevistas encadeadas (até o pano de fundo negro com reflexos acobreados parece o mesmo), o mesmo tipo de enquadramento e até a mesma solução original de colocar as legendas a meio da altura do plano, perto da linha do olhar das entrevistadas. A intimidade dos depoimentos, a imersão causada pelo ritmo da montagem, o posicionamento das legendas e a música instrumental quase permanente produzem uma empatia infinita com todas as mulheres que os realizadores alinham diante de nós. Organizadas tematicamente desde a infância até à velhice, a doença e a morte, passando pelo amor, o sexo e o casamento, a violência e o abuso, a guerra e a pobreza, a necessidade de optar entre família e carreira, estas entrevistas tocam problemas de mulheres do primeiro e do terceiro mundo, de várias tradições culturais e etnias, religiões e sistemas de valores diferentes. Mas será a experiência desta diferença suficientemente «diferente» para nos pôr a pensar, mais do que sobre as desigualdades que afetam as mulheres de todo o planeta, sobre as causas dessas mesmas desigualdades?

Tal como os filmes anteriores de Arthus-Bertrand, Woman tem um «ar de família» que lembra «filmes-sinfonias» como Koyaanisqatsi (1982) e Powaqqatsi (1988), ambos de Godfrey Reggio, ou, mais recentemente ainda, de super-montagens como Life in a Day (Kevin Macdonald, 2011), nos quais os efeitos de espanto e admiração provocados pela fotografia, a montagem e os enquadramentos andavam de mão dada com a produção de um sentimento de pertença global unificado pela descoberta de um «outro» que afinal seria igual a «mim». Mas podíamos recuar ainda mais na história do cinema para encontrar esta mesma estrutura que nos mostra um ciclo de vida inteiro, do nascimento à morte, na ambição e na organização interna das «sinfonias de cidades» dos anos 1920 como Berlim, Sinfonia de uma capital (W. Ruttmann, 1927) ou, especialmente, O Homem da Câmara de Filmar (Dziga Vertov, 1929).

«O denominador comum humanista e essencialista que é "o que significa ser Mulher" acaba por diluir a diferença em detrimento da semelhança, por domesticar a estranha fazendo-a afinal de contas "igual a mim", e por preferir a construção da empatia interpessoal – e até mesmo da cumplicidade – à compreensão das razões e das causas sociais, económicas, políticas, por detrás das diferenças entre as condições de vida, as oportunidades e as ameaças, de todas as mulheres de Woman»

A genealogia é útil porque nos ajuda a perceber que, na verdade, Woman pende mais para a visão do mundo de Reggio ou de Ruttmann do que de Vertov. Não há dúvida que Woman nos tocará a todos de uma forma intimamente pessoal, despertando memórias intimamente pessoais ou sentimentos de compaixão por casos de vida que aqui ganham uma voz individual e a força de uma biografia real. Nesse sentido, a aplicação das fórmulas de empatia de Woman não fazem dele um filme formulaico. Muito longe disso, todas as mulheres que falam neste filme fazem ouvir a «sua» voz, alto e bom som, e vários estereótipos são efetivamente contornados. Outros, todavia, permanecem: a sobre-importância dada à maternidade e à heterossexualidade; a ausência muito marcada do mundo do trabalho; ou o silêncio sobre questões de raça e da herança dos colonialismos europeus – aqui remetidas ao mais inócuo multiculturalismo.

Será que se pode dizer, posto isto, que o filme faz justiça a todas as histórias individuais que nos apresenta? Ou será que, pelo contrário, acaba por, confrontado com tão fenomenal e irredutível turbilhão de diversidade e com tantas e tão fascinantes expressões de vozes e vidas individuais e únicas, sucumbir à tentação de uniformizar toda esta diferença numa procura do que é (ou pelo menos parece ser) comum? É nesse caminho que trabalha a montagem que organiza «biologicamente» (da infância à velhice) as diferentes experiências e contextos da biografia de cada mulher. O denominador comum humanista e essencialista que é «o que significa ser Mulher» acaba por diluir a diferença em detrimento da semelhança, por domesticar a estranha fazendo-a afinal de contas «igual a mim», e por preferir a construção da empatia interpessoal – e até mesmo da cumplicidade – à compreensão das razões e das causas sociais, económicas, políticas, por detrás das diferenças entre as condições de vida, as oportunidades e as ameaças, de todas as mulheres de Woman.

Woman não deixará de emocionar profundamente todos os seus públicos. Mas far-nos-á pensar e agir?

 

O autor escreve ao abrigo do Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa de 1990

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