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As labaredas da inquisição

«Auto-da-fé da Inquisição» (1812-1819), por Francisco de Goya (1746-1828), óleo sobre tela, 46 x 73 cm. Real Academia de Bellas Artes de San Fernando, Madrid.
Créditos / Wikimedia Commons

Vivemos tempos nos quais as mínimas dúvidas ou pedidos de esclarecimentos são vistos como ataques à honra. Quando devia ser o inverso. A honra deveria residir no apuramento dos factos. Mas quem questiona, e o pensamento crítico parece estar reservado a uma minoria, é automaticamente rotulado com adjectivos no domínio do desumano. Como se não fosse a capacidade de questionar que, bem ou mal, nos trouxe até aqui.

Porém, parece opróbrio ainda maior, quando se pede para as questões, porque duvidosas, serem averiguadas pelas autoridades que supostamente detêm a competência para tal. Competência essa atribuída pelas legislações e tratados forjados por boas vontades e maltratados pela falta de vontade de cumprimento. Num parênteses onde ninguém nos ouve (verdade seja dita que é normal que a crença nas entidades que poderiam intervir para o apuramento e julgamento se tenha esvaído. As instituições andam por aí a pairar nas vontades monopolistas como espeluncas metafísicas que se tornaram – a toques e chutes de má fé).

«quem questiona, e o pensamento crítico parece estar reservado a uma minoria, é automaticamente rotulado com adjectivos no domínio do desumano. Como se não fosse a capacidade de questionar que, bem ou mal, nos trouxe até aqui.»

Mesmo assim, há quem prefira pôr um pé fora da praça pública e tentar (e)levar os julgamentos para os locais apropriados – tribunais cujo substantivo não é meramente metafórico, e o que lhes é de direito é realmente o Direito. Sardonicamente, alerte-se para o facto de que os jornais e outros média não são tribunais, tão-pouco deveriam ter a pretensão de tal – e de jornalista a magistrado ainda vai um passinho. Conquanto sejam todos esses pasquins as verdadeiras fábricas de votos. Nessas linhas de produção e montagem a «questão» e a «dúvida» não têm lugar. O direito à opinião é bom, mas se for contra a corrente, o ripostar, em jeitos de enxovalhar, ameaçar e até agredir, é justificado pelo «código deontológico». Sem apelo, mas com bastante agravo.

Agora, vamos lá a ver se nos entendemos. Duvidar de algo não significa defender o «contrário». A própria definição do que é o «oposto» é construída enviesadamente segundo referenciais da ideologia dominante dos contrários bilaterais. Sob a retórica de muitos opinadores profissionais de renome, já apareceram comparações entre o duvidar de informações dadas pelos jornais e a crença de que a terra é plana. Porém, há algo que muita gente ainda não percebeu: questionar a esfericidade da terra é diferente de afirmar que a terra é plana. No plano científico, a esfericidade da terra continua a ser alvo de investigação, e vários estudos mostram que não habitamos um berlinde perfeito. E, graças a trabalhos científicos rigorosos (onde a dúvida e a questão estão sempre presentes), podemos dizer que a terra não é uma esfera perfeita, sem afirmar que é plana. Contudo, seguindo a lógica das metáforas bacocas, todo o afã científico, de pesquisa, estudos e experimentos, que conduz à possibilidade de perceber melhor o sólido geométrico no qual existimos, é completamente posto de lado ao som de berros histéricos – «Terraplanistas!» – para silenciar o espírito crítico.

A epistemologia foi-me introduzida, no âmbito académico, com a Teoria Tripartida do Conhecimento, que diz respeito à «crença verdadeira justificada» ou «opinião verdadeira acompanhada de explicação». O próprio Platão a refuta no Teeteto e dois milénios e tal mais tarde os «casos Gettier» também – nos jogos da filosofia analítica isto ganha outros adornos e embelezamentos. No entanto, no mundo real, das vivências dos humanos, dos humores, comportamentos e acções, importa única e exclusivamente a «crença» (a sagrada «opinião») – essa está aí como santa no altar. À maioria, que se deixa levar pela narrativa dominante desprovida de dúvidas e questões, interessa única e exclusivamente aquilo em que acreditam, despicienda a verdade e a justificação para a verdade – desprezando totalmente a procura e averiguação da verdade. Sem rigor nem pretensões filosóficas, diga-se de passagem, que uma verdade sem justificação está presa por arames. E a crença (opinião), sem a verdade e a justificação, é mera teimosia.

Infelizmente, as labaredas da inquisição andam aí para incinerar quem põe em causa essas crenças, porque elas próprias se tornaram os «critérios de verdade» pelos quais o mundo se pauta. Por este andar, o sol ainda irá girar em torno da terra. Para alguns irá persistir sempre a dúvida: Quem profere isso acredita mesmo ou é somente mais um esquema de dominação? Tenho cá as minha dúvidas acerca disto tudo!


Júlio F. R. Costa é licenciado em Filosofia e mestre em Mercados da Arte.

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