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Eu, Daniel Blake (2016): Um Marceneiro Exige os Seus Direitos (II)

Entre as palavras e os gestos, a contenção e a explosão, as lágrimas contidas e vertidas, a espera e o protesto, a fome prolongada e a necessidade de comer, Eu, Daniel Blake encontra o justo retrato das vidas de Dan, de Katie, e de outras personagens.

«Eu, Daniel Blake», de Ken Loach
«Eu, Daniel Blake», de Ken LoachCréditos / Papo de Cinema

Eu, Daniel Blake é um dos poucos filmes de Loach cujo título inclui o nome de uma personagem. Há mais quatro obras na filmografia do realizador britânico com esta característica, se excluirmos trabalhos produzidos para televisão como The End of Arthur’s Marriage (1965) ou Cathy Come Home (1966). Em A Canção de Carla (Carla’s Song, 1996), Carla é uma refugiada da Nicarágua ajudada por um motorista de autocarro escocês. Em O Meu Nome É Joe (My Name Is Joe, 1998), Joe é um escocês desempregado e ex-alcoólatra que se apaixona por uma assistente social de saúde pública. Em À Procura de Eric (Looking for Eric, 2009), Eric é um adepto de futebol que enfrenta múltiplos problemas familiares e que encontra solidariedade no ex-futebolista Eric Cantona. Em O Salão de Jimmy (Jimmy's Hall, 2014), Jimmy é um regressado à Irlanda depois de um exílio de dez anos nos Estados Unidos, durante a Grande Depressão (1929-1939). Estas breves notas sobre as personagens que surgem nos títulos de filmes de Loach permitem perceber que elas surgem sempre num contexto histórico e social muito preciso. O mesmo acontece com Dan. Mais do que um foco na individualidade da personagem, o que interessa ao realizador é retratar o contexto no qual Dan se insere e a teia de relações que estabelece com outras personagens.

Esta estratégia de representação em Eu, Daniel Blake é evidente na cumplicidade de Dan com a personagem para a qual o filme gravita. À medida que a presença de Dan se vai desvanecendo e o seu corpo cede, Katie (Hayley Squires), uma mãe que cuida sozinha de duas crianças e que ele se ergue para defender, vai ganhando protagonismo. Prestando serviços de limpeza, ela faz tudo para garantir que as crianças não sofrem com a pobreza, incluindo recorrer ao pequeno furto e depois à prostituição. É a negação de direitos fundamentais e da dignidade humana que gera a necessidade urgente e a aceitação da mercantilização da sexualidade. O capitalismo não inventou a prostituição, mas a ideologia burguesa torna-a um recurso aceitável e uma actividade defensável, escondendo as razões económicas e a exploração que estão na sua base. A cena em que Dan passa as barreiras das portas de uma casa comum de um bairro como o seu, para entrar no quarto onde Katie se prostitui, vai ao cerne destas relações sociais e pessoais. Não é apenas o facto de serem amigos que expõe a situação nas feridas que provoca, mas a realidade de serem semelhantes, de perceberem que estão juntos, no mesmo lugar na vida. É uma questão de solidariedade de classe.

A voz de Dan vem da sua própria boca e lê-se na parede onde escreve: «Eu, Daniel Blake exijo a data do meu recurso antes que eu morra de fome.» Mas não só. No fim do filme, Katie lê postumamente o texto que ele tinha escrito para a audiência sobre o seu caso. Nesse escrito que toma a forma de um testamento, ele dizia ser, não um cliente, não um pedinte, mas um trabalhador e um cidadão com direitos. Não é uma voz emprestada esta que ouvimos, como se Katie estivesse apenas a ler aquilo que outra pessoa escreveu. Se esta é a voz de Dan, não deixa de ser também a voz de Katie.

«O capitalismo não inventou a prostituição, mas a ideologia burguesa torna-a um recurso aceitável e uma actividade defensável, escondendo as razões económicas e a exploração que estão na sua base.»

O impacto político da obra foi significativo. A 27 de Outubro de 2016, no programa de debate BBC Question Time, que contou com a presença do realizador, o membro do Partido Conservador, Greg Clark, Secretário de Estado dos Negócios e Comércio, descreveu o filme como ficcional, transmitindo a ideia de que é mentiroso, e aproveitando a ocasião para defender que os funcionários do Departamento de Trabalho e Pensões sofrem muita pressão e fazem o melhor que podem. Loach explicou que falaram com vários destes funcionários e que a pressão que sofrem é para sancionar muitas das pessoas que procuram apoios — e acrescentou: «Quando és sancionado, a tua vida é empurrada para o caos e as pessoas recorrem aos bancos alimentares. Como podemos viver numa sociedade onde a fome é usada como arma?»1

Jeremy Corbyn, então líder do Partido Trabalhista, marcou presença na estreia do filme em Londres e elogiou-o, escrevendo: «Tantas pessoas na Grã-Bretanha passam pela indignidade retratada neste filme, nas mãos do nosso sistema de benefícios, devido às políticas fracassadas e injustas deste governo conservador.»2

O filme foi produzido por Rebecca O'Brien para a Sixteen Films, a Why Not Productions e a Wild Bunch, com o apoio do British Film Institute e da BBC Films. Entre as palavras e os gestos, a contenção e a explosão, as lágrimas contidas e vertidas, a espera e o protesto, a fome prolongada e a necessidade de comer, Eu, Daniel Blake encontra o justo retrato das vidas de Dan, de Katie, e de outras personagens. A permanente tensão que o filme trilha é própria do melodrama, mas surge aqui de uma forma que evita exacerbar a dramaticidade, forçar o miserabilismo, expressando antes a espessura humana, vacilante e vibrante, de cada personagem e das suas relações sociais. O tom é, em simultâneo, enxuto e comovente, sem fechar os olhos à realidade.

Além do importante prémio no Festival de Cannes, Eu, Daniel Blake recolheu muitos mais galardões. Destaco apenas alguns. No Festival de Locarno, venceu o Prémio do Público, tal como em San Sebastián e Estocolmo. Squires recebeu um prémio especial do júri para Melhor Actriz no Festival de Denver. Nos British Academy Film Awards (Prémios BAFTA), foi considerado o Melhor Filme Britânico. Os British Independent Film Awards (Prémios BIFA) reconheceram Johns como Melhor Actor e Squires como a Novata Mais Promissora. Os franceses Prémios César laurearam a obra como Melhor Filme Estrangeiro. A revista de cinema Empire premiou-a como o Melhor Filme Britânico e Johns como Melhor Novato. O Evening Standard galardoou-o como Filme do Ano, Squires como Melhor Actriz Secundária, e com a Cena Mais Poderosa. O Círculo de Críticos de Cinema de Londres reconheceu como Filme do Ano.

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