Actualidade de Treblinka

O poderoso e sufocante documentário inspirado no campo de extermínio de Treblinka que Sérgio Tréfaut acaba de nos oferecer, e que entra directamente no lote restrito de produções capazes de nos reconciliarem com a arte do cinema, tem como maior virtude a sua temível actualidade.

«Andriy Parubiy, chefe das SS ucranianas de hoje, um favorito da NATO e da União Europeia, presidente do Parlamento de Kiev e identificado mentor do massacre de Odessa em 2014»
«Andriy Parubiy, chefe das SS ucranianas de hoje, um favorito da NATO e da União Europeia, presidente do Parlamento de Kiev e identificado mentor do massacre de Odessa em 2014»Créditos / news.liga.net

Tudo no filme atinge o espectador – a interminável viagem de comboio, os fantasmas que nele viajam, a incarnação da vida e da morte proporcionada pela figura lancinante de Isabel Ruth, as cores sem cor, as paisagens esbatidas e sem tempo olhadas por olhos que já não vêem, acompanhadas por palavras assombradas de quem sobreviveu depois de sentir-se morto – mas o grito mais alarmante que brota da tela é a actualidade do que é exposto aos nossos sentidos.

Ironicamente isso acontece através da evocação do campo de extermínio que os carrascos nazis se esforçaram por apagar até ao derradeiro vestígio, para nos convenceram de que nunca existiu. Dando-se ao trabalho de desenterrar centenas de milhares de cadáveres gaseados para os incinerar em grelhas gigantescas.

Haverá quem diga: isso foram outros tempos, já lá vão mais de setenta anos e foi obra de dementes inspirados por um louco.

Por isso o maior dos méritos do admirável trabalho de Sérgio Tréfaut é dizer-nos que não, aquilo não foi um fenómeno de época, a mente do ser vivo que foi capaz de tais degenerações anda por aí e basta-nos não levarmos a nossa vida ao compasso da informação de pechisbeque para descortinarmos as suas emanações, mesmo após cuidadosa aplicação do filtro dos paralelismos abusivos.

O documentário Treblinka é actual porque a realidade do início dos anos quarenta do século passado chega até hoje pela voz de quem sobreviveu à hecatombe. É uma actualidade factual, indesmentível, se bem que haja quem continue ocupado em garantir, até «cientificamente», que aquilo não aconteceu, foram exageros e vinganças dos vencedores.

Percebe-se, por isso, que as mentes perversas capazes de aceitar o extermínio em massa de milhões de seres humanos continuam activas, de modo algum satisfeitas com as tarefas de «limpeza» e «purificação» então executadas.

Os fenómenos expostos deste modo directo, porém, são mais identificáveis, portanto mais controláveis.

Eles são parte do perigo, ainda que não sejam a componente mais letal, sabendo-se que vivemos numa fase de perfídia, insídias e enganos. Os germes da verdadeira ameaça, temível e sempre latente, flutuam nas imagens e palavras de Treblinka e são um convite para que nos internemos mais nessa actualidade.

Aquela interminável viagem de um comboio da morte é uma metáfora da relação do ser humano com o poder, de como a fragilização dos mecanismos democráticos para controlo das actividades de governação e comando vai escancarando a porta dos desmandos.

Os nossos tempos são de democracias dia-a-dia mais frágeis, a que correspondem evidências de poderes cada vez mais absolutos e arbitrários. Ao compasso desta involução humanista vão florescendo manifestações de insensibilidade, de discricionariedade, de arrogância, enfim, de despotismo – e cada vez menos envernizado.

Há crueldade quando um presidente envia drones do seu gabinete para executar um «terrorista» a cinco mil quilómetros de distância, sabendo que a «operação» pode matar a família e dezenas de outras pessoas em redor, vítimas que passam de pessoas inocentes a «danos colaterais» num simples passe de estatística.

«Há crueldade quando um presidente envia drones do seu gabinete para executar um "terrorista" a cinco mil quilómetros de distância, sabendo que a "operação" pode matar a família e dezenas de outras pessoas em redor»

Há despotismo quando se arrasa um país, incluindo escolas e hospitais com meninas e meninos dentro, entregando-o depois a milícias selváticas, para se esquartejar um alegado ditador com o qual se mantiveram negócios e que, de um momento para o outro, é recomendável silenciar.

Há uma degeneração dramática da condição humana quando se tratam como párias, escravos, seres infra-humanos ou simples escória os milhões de vítimas humanas que pedem desesperadamente para sobreviver junto daqueles que são verdadeiramente responsáveis pelo seu martírio.

Há uma insensibilidade comprometedora quando se deixa a casta dos donos do dinheiro à solta para disporem da vida da maioria dos cidadãos, aos quais, paulatinamente, se vão retirando os direitos para se defenderem.

Existe uma arrogância despótica quando se encontra unicamente na imposição da austeridade aos mais desprotegidos a pretensa solução para as chamadas crises da sociedade, as quais, na maioria dos casos, não têm outras raízes que não sejam os obstáculos à acumulação interminável de lucros por elites desumanizadas.

E que interpretação se poderá dar ao comportamento de dirigentes e de um Estado capazes de sujeitar aos requintes de uma violência, que se dirá de uma crueldade cientificamente apurada, mais de um milhão de seres humanos submetidos ao universo concentracionário de Gaza, ou centenas de milhares de pessoas confrontadas com a impenetrabilidade de um muro que divide famílias, comunidades, recursos?

Assim se demonstrando que a actualidade de Treblinka nos deixa perante a evidência de que o Estado de Israel e os seus protectores universais não têm autoridade moral nem legitimidade humanista para invocarem e se apropriarem do Holocausto de judeus e não-judeus.

Neste magma de comportamentos enunciados não é difícil encontrar as sementes que, num caldo de cultura adequado – longe de esquecido – germinem em comportamentos susceptíveis de descambar em situações que Treblinka avisadamente recorda.

Não fiquemos, porém, pelas metáforas; as quais, mesmo sendo-o, vão aflorando em comportamentos assumidos ou insidiosos mais do que suficientes para nos deixar alerta.

«Há que registar obrigatoriamente, para memória presente e futura, que os herdeiros dos esbirros de Treblinka estão vivos, actuantes, e nas mesmas regiões.»

Há que registar obrigatoriamente, para memória presente e futura, que os herdeiros dos esbirros de Treblinka estão vivos, actuantes, e nas mesmas regiões. Bastariam as evocações dos comportamentos de dirigentes como os que desempenham actualmente funções na Polónia pré-fascista, na Hungria, na Eslováquia, na Croácia, nos Estados do Báltico que o neoliberalismo «libertou» ressuscitando forças que, não apenas saudosas de Hitler, tentam fazê-lo reviver. Mas tal não esgota a realidade.

Existe o case study da Ucrânia: nunca será excessivo recordá-lo porque continua a ser escandalosa e significativamente mistificado.

Muitos dos guardas que colaboraram com a guarnição alemã do campo de extermínio de Treblinka eram milicianos ucranianos inseridos na SS hitlerianas, como voluntários ou como membros do exército «livre» da Ucrânia. Entre eles, membros do Batalhão Galícia, que ficou para a História negra da guerra associado ao nome do seu líder e mentor, Stepan Bandera.

Pois bem, Bandera é herói nacional oficial da «nova» Ucrânia, «democratizada» com o envolvimento da União Europeia e os préstimos insubstituídeis da NATO. Ainda hoje, em tempo real, hordas nazis da nova Guarda Nacional ucraniana, corpo treinado por militares das forças armadas dos Estados Unidos, estão a participar nos exercícios da NATO no Mar Negro e que simulam «apropriação de território», quiçá uma formulação julgada menos comprometedora do que a tese hitleriana de «espaço vital».

Andriy Parubiy, comandante das milícias de assalto nazis envolvidas na chamada «revolução democrática» da Praça Maidan, um seguidor actual de Stepan Bandera que foi presidente do Conselho Nacional de Defesa e Segurança e hoje é presidente do Parlamento, depois de ter contribuído para a ilegalização de partidos como o Comunista, age como um interlocutor privilegiado nos areópagos que proclamam a democracia e os direitos humanos.

São habituais os seus briefings com os comandantes da NATO, tendo em conta os seus laços operacionais com os batalhões neonazis, que são determinantes nas actuais forças armadas ucranianas; numa visita recente a Itália, Parubiy escutou a presidente do Parlamento, Laura Boldrini, do Partido Democrático, dizer que deseja o reforço da cooperação parlamentar com a Ucrânia, «tanto no plano político como administrativo».

A actualidade de Treblinka é gritante. Ao fim e ao cabo, um «democrata» como Andriy Parubiy, chefe das SS ucranianas de hoje, um favorito da NATO e da União Europeia, presidente do Parlamento de Kiev e identificado mentor do massacre de Odessa em 2014, poderia ter sido um dos esbirros que mandava abrir as torneiras de monóxido de carbono sobre milhares e milhares e milhares de homens, mulheres e crianças cuja única culpa era existirem.

Bastava-lhe estar na força da vida em 1942 – em vez de em 2016.

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