Precariedade: a realidade e a lei

A precariedade dos contratos de trabalho integra um modelo de relações de trabalho, que não permite pensar o futuro com segurança, que também precariza a vida fora do trabalho e afeta a organização da vida pessoal e familiar.

A CGTP-IN quer intensificar a acção reivindicativa em torno dos salários, da contratação colectiva e da precariedade.
A CGTP-IN quer intensificar a acção reivindicativa em torno dos salários, da contratação colectiva e da precariedade.Créditos / Interjovem

As caraterísticas desta forma de relação de trabalho também incidem negativamente sobre a empresa porquanto, sendo efémera, não é uma geradora de confiança nem incentivadora do aperfeiçoamento profissional, não cria bons profissionais e não leva ao aumento da produtividade e da competitividade. Todavia a precariedade tem-se generalizado de tal modo que, nos dias que correm, as novas contratações são feitas através de contratos precários.

Quais as vantagens que os patrões retiram desta forma de relação de trabalho para mostrarem um tão grande empenhamento na sua utilização?

A relação de trabalho é de poder-sujeição. As partes não se encontram em posição de igualdade. O trabalhador tem um interesse maior na relação porque dela depende a sua estabilidade financeira e familiar e isso coloca-o em posição de fragilidade que aumenta em períodos de grande desemprego, como o que estamos a viver. Ou melhor, na relação de trabalho o trabalhador está sempre numa posição mais frágil e essa fragilidade aumenta com a precariedade do vínculo laboral. O trabalhador perde autonomia e passa a autolimitar-se no exercício dos seus direitos laborais sejam eles individuais ou coletivos, pessoais ou sindicais. Procura manter-se longe dos sindicatos e de reivindicar melhores salários e melhores condições de trabalho e de vida com receio das consequências.

Ao invés, a precariedade reforça a posição patronal que, assim, vê transferido para o seu lado todo, ou quase todo, o poder na relação trabalho. O domínio torna-se avassalador, ganha o poder de punir sem ter de fundamentar e de despedir sem justificar o despedimento.

Resumindo: a precariedade – enquanto modelo – não é apenas um meio de flexibilizar as relações de trabalho, é uma resposta para reforçar o poder patronal, e, ao mesmo tempo, de por «no terreno» as condições de que a direita neoliberal necessita para aplicar o seu modelo ideológico, baseado nos baixos salários conseguidos à custa de trabalho servil.

O nosso modelo Constitucional:

O art.º 53.ª da Constituição da Republica Portuguesa consagra o princípio da segurança no emprego e a proibição do despedimento sem justa causa, como um direito fundamental estruturante das relações de trabalho no nosso país. E consagra-o como um Direito, Liberdade e Garantia dos Trabalhadores, sujeito às regras apertadas do art.º 18.º, da Lei Fundamental. Com este enquadramento pareceria resolvida a questão, mas não é assim, como a realidade mostra.

O art.º 53.º é uma conquista do 25 de Abril e, como tal, um alvo das políticas de direita e do patronato que nunca se conformou com o seu conteúdo democrático e o seu significado político. Daí que o ataque a este princípio se tenha iniciado logo após o 25 de Abril. Quem não sabe da «lei dos contratos» a prazo do então primeiro-ministro Mario Soares? Essa lei marcou o princípio de uma batalha patronal e da política de direita, pela «flexibilização» das relações de trabalho apresentando-a como um necessidade para tornar as empresas mais produtivas1.

Como se vê, o ataque à segurança no emprego não passou pela alteração da Constituição, mas pela sua violação e descaraterização, com o apoio de jurisprudência que se foi encarregando de consolidar um caminho em que a comunicação social foi fundamental para passar a mensagem.

O que diz a lei:

No essencial, a lei atual, em matéria de contratos a termo, concretiza o princípio constitucional que considera o contrato por tempo indeterminado como o meio normal e primeiro de contratação em matéria laboral. Igual princípio pode ser encontrado na Diretiva Comunitária 1999/70/CE, o que explica que os governos e o patronato tenham optado por subverter a aplicação da lei em vez de atacarem a norma constitucional de frente. Se fossem por esse caminho estariam a violar as regras comunitárias.

«Como se vê, o ataque à segurança no emprego não passou pela alteração da Constituição, mas pela sua violação e descaraterização, com o apoio de jurisprudência (...).»

Vejamos, então, o que diz a Lei2 em matéria de contratação a termo:

Art.º 140.º n.º 1 – «O contrato de trabalho a termo resolutivo só pode ser celebrado para satisfação de necessidade temporária da empresa e pelo período estritamente necessário à satisfação dessa necessidade»; e o

Artigo 141.º, n.º 1 al. e) – «O contrato de trabalho a termo está sujeito a forma escrita e deve conter: (…) al. e) a indicação do termo estipulado e do respetivo motivo justificativo; e acrescenta, no n.º 3 – Para efeitos da al. e) do n.º 1, a indicação do motivo justificativo do termo deve ser feita com menção expressa dos factos que o integram, devendo estabelecer-se a relação entre a justificação invocada e o termo estipulado”.

Art.º 147.º, n.º 1 al. e) – «Considera-se sem termo o contrato de Trabalho: (…) al. c) Em que falte a redução a escrito (…) bem como aquele em se omitam ou sejam insuficientes as referências ao termo e ao motivo justificativo».

O que fica dito permite-nos confirmar que os governos da política de direita e o patronato optaram, no essencial, por manter na lei o princípio de que o contrato norma é o contrato por tempo indeterminado, desvirtuando-o na prática do dia a dia, contando, para o efeito, com a passividade e/ou a complacência da ACT, com o fragilidade da posição contratual dos trabalhadores para reclamarem os seus direitos e com uma justiça formalista, que não consegue (para ser benévolo) descortinar no emaranhado da forma as fraudes à lei.

Daí que a esmagadora maioria dos contratos a termo, apesar de serem ilegais continuem a funcionar como se o fossem. Ou porque as tarefas/objeto do contrato não são temporárias (n.º 1 do art.º 140.º), ou porque os contratos não são celebrados pelo período estritamente necessário à satisfação da necessidade (temporária); ou porque lhes falta o motivo justificativo com menção expressa dos factos que o integram, ou porque não conseguem estabelecer a relação entre a justificação e o termo [art.º 141.º, n.º 1 al. e) e 3] sendo que, a omissão ou a insuficiência da referência ao termo e ao motivo justificativo, determina que o contrato se converta em contrato sem termo [art.º 147.º, n.º 1 al. c)].

Claro que a lei tem defeitos, que aqui não analisamos, designadamente em matéria de requisitos de admissibilidade e de prazos, que dão indicação em sentido diverso e que ajudam a subverter a lei, que ajudam a amolecer a intervenção da ACT e a confundir, em matéria de aplicação, os próprios tribunais que preferem enredar-se nas formalidades habituais.

Mas uma coisa parece certa, a lei é claramente subvertida na sua aplicação com as empresas a usarem e abusarem dos contratos precários a termo para manterem e até reforçarem o seu poder, manietando os trabalhadores, impedindo-os de exercerem os seus direitos reivindicativos.

Daí que o combate à precariedade passe pela intervenção em vários domínios, a começar pela correção dos defeitos da lei, mas também pela sua aplicação o que só pode ser feito pela luta de todos os trabalhadores.

 

O autor escreve ao abrigo do Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa de 1990

  • 1. Na altura, em 1976, o conceito de competitividade ainda não era usado na linguagem neoliberal
  • 2. Estamos a referir-nos ao Código do Trabalho, art.ºs 140.º, n.º 1, 141.º, n.º 3 e 147.º, n.º 1, al. c), in fine pela correção dos defeitos da lei, mas também pela sua aplicação o que só pode ser feito pela luta de todos os trabalhadores

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