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A nossa Selecção - uma linha de ataque à pobreza

Muitas das nossas vedetas treinaram horas e horas na rua para saírem dela, sem nunca deixarem passar uma bola cheia de lama, porque não há lugar a displicências quando se luta para fugir à miséria.

Talvez o meu futuro como jogador de futebol tenha ficado logo definido quando, no primeiro ano do liceu, ao ver uma bola cheia de lama vir na minha direcção, a deixei passar sem lhe meter a cabeça, abdicando de um golo para manter o cabelo limpo, ganhando, desde aí, entre os meus companheiros de turma, o carimbo de um tipo franzino com algum sentido posicional, mas sem a noção do que era verdadeiramente importante na vida.

E, no entanto, jogava bem hóquei em patins que, na altura, estava quase ao nível do futebol, com transmissões da rádio em ondas curtas, às três da madrugada, quando o campeonato se realizava no Chile ou na Argentina ou, a horas mais decentes, se o torneio era em Montreux, vivendo a emoção das finais entre Portugal e Espanha, com Livramento e o Adrião na boca de todos, uns Ronaldos que voavam com rodas nos pés.

A pátria lusa, nesses meados do século passado, pouco riscava no desporto em geral, e no futebol em particular, quando ainda não se tinha chegado às primeiras taças europeias do Benfica e do Sporting, sendo o hóquei a única afirmação do orgulho pátrio, já que, os outros pobres do Sul (agora juntos nos défices), estavam já no topo com o Real e o Barcelona, o Juventus e o Inter de Milão.

«Alguém fica com melhor ideia da Etiópia quando um atleta desse país ganha a maratona?»

Como, na ditadura, tudo o que pudesse distrair as barrigas da miséria dava jeito, também o futebol a ajudava, e Salazar teve de se meter nos negócios do chuto para impedir que o grande Eusébio fosse para Itália, onde ganharia muito mais, mantendo-o por cá como uma espécie de «pretinho da sorte» do império colonial.

Mas, embora também tenha celebrado as mais empolgantes vitórias da nossa selecção, houve sempre algo a separar-me do «verdadeiro» aficionado, aquele que segue na TV os passos do autocarro da equipa, do hotel até ao estádio, e fica trombudo no dia seguinte à derrota, vibrando, com a vitória, um acertar de contas com a impertinência e arrogância do adversário.

«Ó pá, temos de ganhar à França para eles perderem aquela mania da superioridade!...». E essa foi a grande vingança das concierges portugas (condecoradas pelo Presidente Marcelo, não pela dureza de uma vida de trabalho, mas, simplesmente, por terem aberto a porta aos fugitivos do Bataclan…) que, finalmente, podem sorrir de cima a les patrons.

Mesmo nesse aspecto, contudo, penso que os ganhos estão pré-condicionados. É pouco provável que os que perdem fiquem mudos de admiração, achando, geralmente, que foi azar ou erro do árbitro, uma injustiça para esquecer. De resto, sempre tive dúvidas sobre a imagem que as vitórias projectam do país a que pertence o atleta, ou a equipa que as alcança. Alguém fica com melhor ideia da Etiópia quando um atleta desse país ganha a maratona? Não será antes olhado como um produto do subdesenvolvimento da pátria, alguém que conseguiu sair, a pulso, do inferno?

Para muitos de nós, vistos à distância, os grandes clubes e organismos dos desportos de primeira linha, como o futebol, constituem um mundo à parte em que o fruir da prática desportiva há muito foi engolido por poderosas máquinas de fazer dinheiro, capazes de projectar uma enorme fama mediática, onde pululam oportunistas, especuladores e organizações corruptas, que usam e abusam dos apaixonados do espectáculo que exploram, gerindo campeonatos, torneios, contratos com a TV, anúncios, camisolas, bonés, cachecóis, relógios, para além de compras e transferências dos poucos jogadores e treinadores que ganham salários obscenos, enquanto a maioria dos outros ganha muito pouco.

Vivendo longe desse mundo, só tive a verdadeira percepção do ambiente que nele se vive quando, em 2004, nas vésperas de um jogo do Europeu desse ano, que ia ser disputado em Coimbra, a selecção inglesa e Paul Scholes (o mais premiado futebolista inglês de sempre), resolveram visitar o Hospital Pediátrico e o Serviço de Ortopedia, de que eu era director.

«Julgo não haver herdeiros da burguesia abastada entre os jogadores de primeira linha do futebol nacional.»

Tive então oportunidade de acompanhar a delegação inglesa e o jogador, ele mesmo um rapaz mediano, sardento e sorridente que, de forma invulgarmente simples e simpática, soube interagir com as crianças excitadas de alegria, oferecendo bolas, equipamentos e deixando-se com elas fotografar. E só me apercebi de que aquele jovem não era afinal um simples mortal quando, ao chegar à porta do hospital, me encontrei subitamente no centro de uma multidão de jornalistas cheios de microfones, máquinas fotográficas e câmaras da TV, da BBC à CNN, cego pela saraivada de flashes que tinham como alvo um Paul Scholes afável e sempre disponível, a tentar responder às perguntas que choviam de todos os lados, assediado por uma, habitualmente sisuda, técnica do laboratório que ali surgiu a rir e aos saltos, de cabeça perdida.

Julgo que é essa ideia de american dream ou da nossa «sorte grande», que atrai tantos jovens pobres, que veem no futebol o único meio de saírem da extrema miséria em que vivem, nele apostando tudo o que podem. E essa é uma história, talvez pouco sublinhada, de corajoso e persistente combate por uma vida melhor, uma forma de afirmação de dignidade, buscando o sucesso próprio e, muitas vezes, apoio para a família.

Para os raros super-dotados que, com muito trabalho e suor, conseguem alcançar esse sonho, o salto do anonimato e da pobreza para a fama e a abundância é, seguramente, demasiado brusco. Perdoem-se, por isso, ou pelo menos compreendam-se, alguns deslumbramentos e novo-riquismos que fazem o delírio dos media, embora, também aí, não existam folgas e seja necessária uma boa cabeça e melhores conselhos para não se acabar com uma carreira promissora.

Foi, e é assim, com o boxe e o basquete para os negros dos USA, é também assim com o futebol para muitos rapazes pobres do nosso país.

«Muitas das nossas vedetas treinaram horas e horas na rua para saírem dela, sem nunca deixarem passar uma bola cheia de lama, porque não há lugar a displicências quando se luta para fugir à miséria.»

Quase toda a linha avançada da nossa selecção é um bom exemplo disso, o que nada retira ao mérito de cada um, salientando, pelo contrário, o respeito e a admiração que, como jovens e atletas, nos devem merecer:

Cristiano Ronaldo, enviado, aos dez anos, pela família muito pobre, da Madeira, para o centro de formação do Sporting, em Lisboa, um dos melhores jogadores do mundo, único português conhecido em todos os continentes.

Nani, filho de cabo-verdianos paupérrimos, abandonado pelo pai aos cinco anos e pela mãe aos 12, criado pela tia num bairro pobre de Lisboa, onde treinava sete horas por dia para ser jogador, chegando a estrela de primeira grandeza no Manchester United.

Quaresma, miúdo cigano do bairro Casal Ventoso, um meio violento e de tráfico de droga, criança revoltada contra o racismo, jogador internacional de excelência. Sobrinho-neto de Artur Quaresma, também cigano, jogador do Belenenses e da selecção nacional que, em 1938, na presença de Salazar e de Franco, recusou fazer a saudação fascista no primeiro encontro Portugal – Espanha, um acto de coragem que lhe valeu ser preso pela PIDE.

Eder, o herói do golo em França, miúdo da Guiné fugido da guerra e internado numa instituição perto de Coimbra, jogador do Adémia a quem o senhor Mário do Talho dava uma costeleta por cada golo que marcasse, até ir para Académica onde Domingos, treinador e ex-jogador do Porto, também antigo menino da rua (como Victor Baía, Fábio Coentrão e outros), lhe deu a mão, e que minha mulher encontrava no correio, discreto e metido consigo, a enviar encomendas para a avó, ainda a viver na Guiné.

Ou o mais jovem de todos, Renato Sanches, a nova coqueluche, pobre de fome do bairro da Musgueira até chegar à academia do Benfica, agora contratado para o Bayern de Munique.

Julgo não haver herdeiros da burguesia abastada entre os jogadores de primeira linha do futebol nacional. Muitas das nossas vedetas treinaram horas e horas na rua para saírem dela, sem nunca deixarem passar uma bola cheia de lama, porque não há lugar a displicências quando se luta para fugir à miséria.

Talvez tenha sido essa força e sentido de sobrevivência, o pequeno acrescento que os fez ganhar a final do Campeonato Europeu, em Paris. Estão de parabéns. Como também estão, Sara Moreira, medalha de ouro na meia-maratona, Patrícia Mamona, medalha de ouro no triplo salto, Ana Dulce Félix, medalha de prata nos dez mil metros, Jessica Augusto e Tsanko Ardaunov, respectivamente medalhas de bronze na meia- maratona e no lançamento do peso, resultados alcançados nos Campeonatos Europeus de Atletismo.

Mas, embora exija semelhante dedicação, este é verdadeiramente outro «campeonato». Com muito menos dinheiro, menos fama e outras histórias...

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