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«A literatura é sempre uma forma de resistência»

Poeta (o seu último livro, «Roturas e Ligamentos», atingiu a 2.ª edição em pouco tempo) e autora de livros para a infância marcados pelo humor, por uma assinalável inteligência crítica e pela presença de um registo literário sem concessões, ensaísta e crítica literária, com colaboração regular nos media especializados, Rita Taborda Duarte é uma voz a ouvir.

Rita Taborda Duarte
Rita Taborda DuarteCréditos

Uma voz reveladora também de preocupações no que toca à promoção da leitura e à necessidade de valorização da leitura literária – numa altura em que parece estar na ordem do dia um segundo fôlego para um Plano Nacional de Leitura que tem estado como que adormecido.

Continua a conciliar a escrita poética, a crítica e a criação literária para os mais novos… Em sua opinião há uma coerência intrínseca nessa tripla intervenção?

A crítica é um modo de deixar inscrita a nossa resposta a um livro. É assim que penso a dialéctica escrita e leitura: a escrita é sempre, mesmo que de forma enviesada, uma resposta à leitura; um modo de pedir contas àquilo que lemos. Por vezes respondemos com um texto de aparentes certezas e com um jargão próprio, partilhado, outras vezes respondemos com um poema; mas a atitude, a necessidade, parte da mesma raiz: responder às palavras que nos desafiam.

E entre a escrita para crianças e a poesia, a pulsão é também uma só, penso; em ambas, a representação do mesmo espanto perante as palavras, a linguagem: pensar a língua, usando-a como se fora a primeira vez, num conluio entre inquietação e estranhamento, perante uma língua que nos é tão próxima, tão constitutiva e ao mesmo tempo se situa tão aquém das potencialidades do mundo.

O poeta precisa de ter perante a linguagem a mesma atitude da criança, que adapta a língua que fala, à lógica do seu conhecimento do mundo. Aquele mesmo princípio que a faz dizer «partida, "lagarta" [em vez de largada], fugida»; o mesmo princípio que a faz estranhar e mesmo sorrir, quando alguém lhe fala das asas da chávena, quando toda a gente sabe, até ela, que uma chávena não pode voar (quase nunca).

Quem folheia e depois lê o seu último livro de poesia, «Roturas e Ligamentos» (Abysmo, 2015; 2.ª ed., 2016), poderá achá-lo particularmente desafiador. Como se conjuga lirismo – que o é – com umas ilustrações, quase estranhas num livro de poesia, como são as do André da Loba? E com um design, muito especial também, da Dulce Cruz? E quer desvelar um pouco a questão do título?

Fiquei muito feliz com o resultado final do livro, porque mais do que um diálogo, há um entrosamento (cruzamento, intersecção), entre as imagens belíssimas, com movimento próprio, do André da Loba e os meus poemas. Algumas imagens atravessam os meus textos e tocam-nos (ferem-nos) em momentos específicos, agudos; também gosto de pensar que as minhas palavras por vezes se entranham espessamente nas imagens.

Mais do que um conluio entre texto e ilustração, vejo no livro uma medição de forças entre modos de leituras, ângulos de visão; e é claro que a excepcional concepção gráfica da Dulce Cruz para isso também contribui.

«Se se vai rasurando a língua, tornando-a rasteira, rasura-se

o mundo em nosso torno, incluindo o imagético»

No fundo, este título, «Roturas e Ligamentos», pode até ser levado à letra; é um livro de rupturas e de ligamentos, do ponto de vista das temáticas poéticas, do amor e desamores, do ponto de vista da relação da escrita com a percepção do mundo, da relação entre palavras e imagens; e isto é claro tanto na última secção do livro, intitulada «fractura exposta», como na relação, também, entre as ilustrações do André e os meus poemas. Bom, estes confrontos, nem sempre pacíficos: deixam marcas, consequências; algumas visíveis: roturas e ligamentos, pois.

Tem dedicado muita atenção à escrita para os mais novos, tendo já recebido distinções públicas por ela, como o Prémio Branquinho da Fonseca. Como encara hoje essa escrita e a sua leitura, numa época em que a imagem parece sobrepor-se a tudo (até o último Prémio Nacional de Ilustração foi concedido a um livro cuja única palavra, sem contar com a ficha técnica e o nome da editora, é o seu título…), e numa altura em que há mais gente e mais miúdos a ler, mas em que cada vez se observa mais dificuldade em ler textos de alguma exigência semântica e estilística?

Eu não me revejo tanto na máxima «uma imagem vale mil palavras», como na inversa, que me atrai muitíssimo mais: a capacidade (que é sobretudo a literária) de uma palavra valer e ter a força, concentrada em si mesma, de mil (ou mais!) imagens. É esse o poder da linguagem: se se vai rasurando a língua, tornando-a rasteira, rasura-se o mundo em nosso torno, incluindo o imagético.

Por vezes comentam comigo que uso, mesmo nos textos em verso, algumas palavras difíceis (e algumas construções frásicas mais rebuscadas) que as crianças não conhecem… eu penso que isso é uma vantagem: o não conhecer-se é uma óptima oportunidade para conhecer: o não saber pode ser só o primeiro patamar antes do saber. A literatura tem e deve ter esse poder; se vem só confirmar o consabido, de pouco nos servirá…

Aflige-a ver dezenas de pessoas num metro ou numa carruagem de comboio ou num autocarro a olhar apenas para o telemóvel e a mexer-lhe?

E como sabemos nós que não estão todos, avidamente, a ler um livro nos ecrãs, em pequeno formato?

Desconfiamos que não, mas é claro que podemos estar enganados… Deixe-nos perguntar se tem um livro seu para a infância favorito? Se sim, qual e porquê?

Hoje talvez possa dizer a «Alice do Outro Lado do Espelho», amanhã direi outro com a mesmíssima certeza e assim por diante. Sei que os grandes livros para crianças não são só aqueles de que gostámos muito na infância (como o meu e «Bichos, Bichinhos, Bicharocos», de Sidónio Muralha, por exemplo), mas aqueles que não nos saem da memória e que nos habitam (tanto como nós os habitámos) quando já somos adultos.

«A literatura não é, como queria Platão, uma forma difusa de imitação de realidade; é, sim, uma construção do real»

Em relação aos meus próprios livros, talvez goste mais daqueles que têm mais texto, em que ando por ali a remexer as palavras, a remoê-las: «A Verdadeira História da Alice», «O Tempo Canário e o Mário ao Contrário» (que foi um livro muito demorado, nunca mais acabava eu de lamber as frases, como diz Sá de Miranda dos seus versos), e «O Rapaz que não se Tinha Quieto», que ainda estou para descobrir se será efectivamente um livro para crianças.

Também apreciamos muito «O Manel e o Miúfa, o medo medricas», narrativa a tender para o juvenil, que aliás foi escolhida este ano, com mais nove livros portugueses, para a selecção Eurotoolbox.

Numa época em que, por exemplo, vemos instituições de formação de educadores e professores do pré-escolar e do básico cortar dezenas e dezenas de horas destinadas à literatura e à cultura literária nos planos de estudos dos seus cursos (e até a banir o nome literatura das designações das unidades curriculares, para não «espantar a caça»), existe ainda um sentido para a presença da literatura na formação e na sociedade?

Sim, claro que sim! Enquanto não se perceber que a literatura, a narrativa, a poesia, a linguagem, a arte, não é algo acessório, nem sequer essencial, sendo simplesmente a essência, vamos continuando a empobrecer o mundo, a rasurá-lo, tornando-o cada vez mais plano, chão, unidimensional.

É que aquela máxima de Oscar Wilde, que nos diz que não é a arte que imita a vida, mas o inverso, que a vida imita a arte, tem muito mais do que uma pontinha de razão. A literatura não é, como queria Platão, uma forma difusa de imitação de realidade; é, sim, uma construção do real… sem ela, teremos menos mundo no mundo à nossa volta.

Habitamos um mundo flagelado pela barbárie da austeridade imposta pelo poder económico na América e na Europa (e por aqueles que, por exemplo nos directórios políticos europeus, servem esse poder económico). Um mundo flagelado por guerras e pelo terrorismo, pela tragédia dos refugiados, pela barbárie obscurantista do Daesh… Faz sentido continuar a escrever poesia e outros textos literários?

Sim, claro que sim, de novo. Sempre e por isso mesmo! Em parte, a resposta a esta pergunta está incluída na resposta à questão anterior. Só acrescento uma coisa mais: mesmo que não verse especificamente sobre temas políticos, a literatura é sempre uma forma de resistência, que não se limita a aceitar simplesmente o mundo como ele é; é parte activa na sua reconstrução; é um modo de o recriar, mais do que o re(a)presentar.

Assim, posso parafrasear Borges (que dizia que todos os livros eram autobiográficos), quando afirmo com um convicto grau de certeza que toda a literatura é política; alguns textos poderão até iniciar-se «Aconteceu certo dia em Alepo», enquanto outros «Num certo lugar da Mancha, cujo nome amanhã o direi»… tudo o que sabemos do mundo muda-nos, tudo o que escrevemos, acrescenta mais mundo ao mundo.

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